A Sociedade Fechada e os seus Inimigos

Chego à recepção.
Fico a saber que, a propósito de um ensaio de John Gray, em que o eminente pluralista nega que sociedades “fechadas” como o Irão, Rússia, etc. sejam “ditaduras”, o Henrique pergunta se “uma sociedade fechada pode não ser uma ditadura”.

Há discussões que dificilmente podem arrancar sem um esforço inicial de estabilização semântica. Por razões óbvias, aqui não é o lugar indicado para esses trabalhos. E, diga-se, nem sempre se pode confiar em Gray para colaborar na tarefa. Mas, ignorando os exemplos concretos, tenho de reconhecer (o dia haveria eventualmente de chegar) que Gray tem razão. Pensando melhor, tem razão em parte.

O que parece ser evidente para todos é que a democracia que aqui no Ocidente se preza, a representativa, constitucional e liberal, só é compatível com uma sociedade aberta (no sentido de Popper/Gray). Por uma razão simples: este regime democrático contemporâneo tem por objectivo não ter objectivo, ou se se quiser, tem por objectivo proteger as liberdades e direitos dos homens, sem objectivos colectivos ulteriores. Não é um governo telocrático. Só encaixa numa sociedade aberta porque esta também não se quer fechar na consecução de um objectivo, nem de um modelo.

Mas desde há já algum tempo que Gray pretende proclamar o pluralismo irredutível do mundo humano. A proclamação tem consequências. Uma delas é a de que nem todas as sociedades têm de ser abertas; e outra é que ninguém tem a obrigação de libertar as criaturas que nelas vivem. É bem possível que a ideia de que todo o ser humano tem uma inclinação irresistível para gozar da autonomia liberal, e que quando tal não acontece certamente há repressão ilegítima, seja um preconceito muito nosso. As sociedades fechadas têm de ser “aceites” pelo Ocidente, dizem os pluralistas. Porquê? Porque nem todas são “ditaduras”. O problema de Gray é querer afirmar o pluralismo contra os perigosos monistas recorrendo a um vocabulário que é fruto de uma forma particular (e recente) de monismo.

A partir do século XX, em particular depois de 1945, o discurso público moralizou estas duas expressões – “sociedade fechada” e “ditadura” – contrariando directamente a sua história. Ao atribuir-lhes um significado novo, fê-lo para classificar as sociedades e os regimes políticos de acordo com um princípio simplificador e monista, o de que nada é real senão a democracia liberal, tudo o resto não passando de aberrações mais ou menos ofensivas e que clamam por correcção.
Gray rendeu-se docilmente a uma terminologia que não lhe convém. E, no entanto, o nosso pluralista, saltando de equívoco em equívoco, talvez tenha chegado a uma conclusão prática razoável.
publicado por Miguel Morgado às 00:53 | comentar | partilhar