Nonsense upon Stilts (*)

A médica Ana Matos Pires assina um artigo de opinião na edição de hoje do Público. Sobre a opinião, nada tenho a dizer: ela decorre do exercício do direito de liberdade de expressão. A determinada altura do texto, Ana Matos Pires pede licença para recordar algo que, na sua opinião, é elementar (sublinhado meu):
Deixem-me só recordar que Jeremy Bentham, com a introdução do termo "deontologia", pretendia conseguir uma alternativa mais liberal ao termo e ao conceito da palavra "ética", tendo em conta que esta última, ao ocupar na forma qualitativa de conceito laico o lugar do termo religioso "moral", se tinha moralizado.
Sobre isto já tenho algo a dizer. Esta frase não contém uma asneira: contém várias. Comecemos pela mais simples: A autora do texto atribui a Bentham a ‘introdução’ do termo deontologia. Em tese, é plausível: afinal de contas Bentham inventou diversas palavras (pannomion, panopticon, Ultramaria, são apenas algumas de que me recordo, assim de repente). Sucede que o termo deontologia não é um neologismo, nem foi inventado por Bentham. Seria apenas uma confusão se este equívoco não fosse a cortina diáfana que encobre –mal– a ignorância da autora na matéria sobre a qual cometeu um texto. É que Bentham foi um crítico da ética deontológica e o proponente de um discurso ético completamente distinto: o utilitarismo, uma forma de consequencialismo ético. Um conhecimento elementar da Ética permite saber que as abordagens éticas consequencialistas e deontológicas estão em visceral oposição filosófica no que se refere à natureza do Bem. É este 'detalhe' que confere gravidade ao disparate.

Claro que a autora tem uma 'escapatória' possível: sugerir que por 'lapso' confundiu Jeremy Bentham com Immanuel Kant -uma confusão perfeitamente compreensível, atendendo à semelhança dos nomes. Infelizmente isso só lhe resolveria o problema da aproximação da deontologia a um dos seus expoentes filosóficos. É que em seguida há a sugestão de Bentham como liberal. É uma sugestão extraordinária para quem se tenha dedicado ao estudo da história do pensamento político. Sem querer complicar muito, limito-me a referir que o utilitarismo é um produto de uma tendência radical da Aufklärung, que rejeita a existência (prévia) de uma ordem natural como base para o juízo ético e propõe em alternativa uma ética baseada numa concepção filosófica e psicológica do homem enquanto unidade autónoma e sensorial. Esta rejeição equivale à rejeição do jusnaturalismo, a base do liberalismo clássico. Os antepassados filosóficos e jurídicos de Bentham são positivistas como Helvécio e Beccaria; ou o racionalista e enciclopedista Diderot (l’homme est né pour penser de lui-même). Se a autora do texto descobrir em qualquer um deles o mais ténue vestígio de liberalismo, faça o favor de nos avisar. Uma vez mais, é possível desculpabilizar a autora argumentando que não disse exactamente que Bentham era liberal mas antes que... Uma vez mais: possível? Sim. Provável? Não.

Ainda me apetecia dizer algo sobre as origens do termo ‘moral’, de moeurs –hábitos, costumes e tradições de uma determinada comunidade– e a conotação estritamente religiosa que é sugerida. Mas não vale a pena. A avaliar pela tendência afoita para se aventurar por áreas de conhecimento que não domina minimamente, parece-me que a autora padece de um mal frequente em Portugal: a ligeireza opinativa. Não faço sugestões de terapêutica: seriam certamente barbaridades de ordem não inferior à sugestão de Bentham como deontológico e liberal.

(*) O título do post é o título de um panfleto de Bentham - uma crítica à Declaração francesa dos Direitos do Homem e uma rejeição total da existência de direitos naturais. Estranho, para um 'liberal'.
publicado por Joana Alarcão às 10:18 | partilhar