Apontamentos sobre a Escola em autogestão do João Miranda

O Paulo Marcelo, por favor, que não me leve a mal, mas... sinceramente... o tal artigo do João Miranda não é, parece-me, um “excelente texto de opinião” . Será, isso sim, um excelente exemplo de um certo tipo de opinião. Nada tem de extraordinário – é, quando muito, um extraordinário disparate. É um texto de quem não sabe do que fala. E fala do que não sabe dum modo obscenamente assertivo. Seria hilariante, se a matéria não fosse tão grave.
O texto do João Miranda, na verdade, não passa de um texto “ideológico”. E é, de facto, uma defesa da ignorância. Como o são, de resto, os habituais aplausos babados a todas as grosserias programáticas deste Ministério (só nominalmente) da Educação.

O João Miranda, quando escreve sobre a Escola (e não, felizmente, noutros assuntos – aí bem mais certeiro), só me lembra aqueles estrategos de café – dispõem as tropas no terreno da mesinha entre um cinzeiro e duas chávenas e obtêm sempre estrondosas vitórias. Tudo tão simples. Assim todas as vitórias são fáceis: não se tem em linha de conta as características do terreno, as condições do tempo, o moral da tropa (sim, o moral...).

O problema com os textos do João Miranda sobre a Escola é o de serem dotados de uma espécie de boa coerência interna – as suas partes parecem bem concatenadas, isto é, os enunciados articulam-se aparentando constituir um sentido geral e, se nos deixarmos embalar, convence - mas, visto a partir de fora, como um todo, tudo aquilo acaba por se revelar como o que é na verdade: um aborto, um monstro.
Todos estes textos descaradamente bárbaros dos “liberais” sobre a Escola não são mais do que uma forma inteligente de "estupidez".
Há ali um manejo ilusionista de conceitos – o que denota uma certa destreza -, mas tudo isso está inscrito num quadro geral de cegueira. Alegre cegueira. Convicta cegueira.
É uma autêntica pulsão “liberal” que os faz querer “liberalizar” tudo o que mexe sob o sol. Doença infantil do liberalismo.

Tudo o que é dito no texto em questão poderia ser dito de qualquer actividade humana mais ou menos pública – com vários tipos de intervenientes com papéis diferenciados, com serviços prestados, com bens materiais implicados, etc. Tudo aquilo assenta no princípio segundo o qual todas as actividades, independentemente das suas diferenças específicas, são equivalentes. As regras que se aplicam a umas se podem aplicar indiferenciadamente (e indiferentemente...) a todas. O que é um erro.

Perguntará a rapaziada “liberal”: mas por que é que a Escola há-de ser diferente de uma mercearia? Não há que responder. É que a Escola já é, por si, diferente duma mercearia. Quem não consegue ver isso só pode ser lamentado.

Este discurso “liberal” sobre a Escola tem os tiques do parvenu que, chegado perante uma biblioteca, percorre com os olhos as estantes e não percebe. A seguir, desconfia daquilo. Qual é a utilidade daquelas coisas que ocupam um espaço tão precioso? Avalia os livros pelo seu peso (literal). Estes livros, visivelmente inúteis, podiam muito bem ser rentabilizados numa lareira. O seu conteúdo não importa (alguns gatafunhos são imperceptíveis e há mesmo línguas ininteligíveis) – importa sim o papel ser bom combustível ou não. Para que vou estar eu a pagar a manutenção de livros que não produzem uma boa fogueira? E é também importante que um livro não arda rapidamente. Um livro em combustão mais lenta produz calor durante mais tempo e é, por isso, um bom livro.
E porque não há-de isto ser gerido como um lagar? – pergunta-se o teórico. E discorre mesmo, inteligente: se um lagar com demasiadas tulhas mal cheias de azeitonas é um lagar visivelmente mal governado (desperdício de tulhas), então uma escola com demasiadas turmas com menos de 25 ou 20 alunos é uma escola mal gerida. Há aqui turmas a mais caramba! Qualquer pessoa de capacidade mediana vê isso. Não é preciso ser um professor para diminuir o número de turmas.
Pois não, pois não.
Basta um capataz mais ou menos alfabetizado. Alguém com experiência em armazéns.

Aqueles que vêem a Escola como uma fábrica de enchidos (a metáfora é terrivelmente apropriada), e que fazem o transporte da “lógica” desta para aquela, têm sempre a tarefa mais facilitada do que aqueles que não cometem esse disparate. É muito mais fácil fazer analogias fáceis sobre aquilo que é, por natureza, difícil. E essa dificuldade é sempre brandida como um pretexto miserável para a escolha do caminho mais fácil. No nosso tempo, aparece desde logo como mais ridículo aquele que defende a Escola enquanto Escola do que aquele que a compara com uma qualquer salsicharia.

Não partilho de todo daquela embirração dos “liberais” para com os sindicatos. Nem sequer chega a ser um ressentimento de classe. É mais uma reacção agressiva de tipo pavloviano. O próprio título do artigo ( "Autogestão Escolar" ), desonestamente, procura (e conseguirá) causar salivações enfurecidas naqueles que estão sempre dispostos a recordar (a propósito e a despropósito) as “loucuras” do Verão Quente. Os sindicatos são organizações de classe que procuram defender os interesses dessa classe. E depois?... Acontece que uma classe profissional não paira no vazio, mas trabalha num contexto e as suas condições laborais influenciam qualitativamente esse contexto - neste caso, a Escola. E então?...
Sinceramente, o que me desagrada mais nos sindicatos de professores são as manifestações em que se comportam mais como metalúrgicos dos anos 70. Esses comportamentos têm a sua importância "simbólica"... Deviam lembrar-se que não constituem um grupo profissional indiferente. Deviam saber manter-se no seu lugar.

No artigo, lêem-se aquelas frases sonantes: 'quem paga não manda, quem manda não paga'. Isto é, se sou eu que pago, devo ser eu a mandar e não é possível que um tipo tenha o poder de mandar e não tenha o encargo de pagar. Aquela frase do artigo do João Miranda pode dizer-se a respeito de tudo e a respeito de nada – soará sempre bem, parece sempre ser justa. Pode classificar-se esta coisa como mais uma manifestação da ‘síndrome do lojista míope’. Pelos vistos, tudo pode ser reduzido a uma questão de contrapartidas entre pagar e mandar. Mesmo uma coisa como a Escola.
Esquece-se que ensinar é uma actividade sui generis, no sentido radical da expressão. A relação professor-aluno, a apropriação, acompanhada, de saberes é um acontecimento demasiado grave (e ao, mesmo tempo, frágil) para ser sujeito a tratamentos grosseiros. Ao dizer-se isto, pisa-se terreno delicado, porque este é o tipo de enunciados que provoca o riso na rapaziada “liberal”. Insiste-se: uma sala de aula não é equiparável a um armazém de batatas ou à boa distribuição dos tubérculos pelas sacas.
Trata-se aqui de uma coisa que só existe num equilíbrio "ecológico" muitíssimo delicado. Mas esta gente, irresponsavelmente, dedica-se a demoli-la - até que não ficará pedra sobre pedra.
Destrói-se, assim, a Escola. Porque se estraga aquilo que lhe é mais próprio.


Para o ponto de vista(?) em questão há ali clientes que pagam. E há umas criaturas que fornecem uma mercadoria. Aquelas são os professores e a mercadoria é o conhecimento (podemos usar também o antiquado nome de Saber). Os clientes pagantes são os pais. Os fornecedores da mercadoria não são responsabilizados pelo produto e pelo modo como o fornecem. Os clientes, pagam, mas, coitados, não são tidos nem achados no tipo de produto que, sem alternativa, compram. Não lhes é dado o direito de avaliar a qualidade do produto. Coisa de que eles seriam perfeitamente capazes, claro. Ensinar trigonometria ou morfologia, como sabemos, não é diferente de vender sapatos ou presuntos.
São certamente felizes as pessoas que assim pensam. Têm tudo bem arrumadinho nas suas cabecinhas. Não sopra por ali uma dúvida, uma apercepção da radical diferença de uma coisa, uma inquietação. Não estão nunca postas perante uma dificuldade. Tudo é facilmente resolúvel.

Parece que durante anos vivemos sob uma espécie de ditadura mental da Esquerda. Talvez agora tenhamos caído numa ditadura “liberal”. Só que esta agora não chega a ser mental. Não tem espessura cortical para isso.

Seria curioso saber para onde enviará depois os seus filhos esta rapaziada “liberal” – se para as escolas públicas vandalizadas que preconizam, se para as outras.

Uma coisa tão séria como a transmissão e incorporação de conhecimentos é vista por estes voluntariosos teóricos como uma mera reprodução mecânica. Quase como uma coisa de êmbolos e torneiras controladas. O que passa completamente ao lado daquilo que importa.
publicado por Carlos Botelho às 19:55 | partilhar