Religião, felicidade e infelicidade

Realizou-se nos dias 9 e 10 de Outubro passado, no Seminário da Boa Nova, Valadares, um Colóquio internacional, subordinado ao tema "Religião e (In)felicidade", com 220 participantes, e conferencistas vindos das Neurociências, da Sociologia, da Filosofia, da Teologia.
Aquele "in" de (In)felicidade indicava, à partida, o reconhecimento de que as religiões foram e são simultaneamente causa de felicidade e infelicidade.
Pela sua própria definição, a religião está referida à salvação: felicidade, sentido último, o sentido de todos os sentidos...
Grandes filósofos, como Kant, Hegel, Bloch, Habermas, reconheceram que foi pelo cristianismo que soubemos da dignidade da pessoa humana. Em tempos terríveis de miséria material e humana, foi a religião que ajudou homens e mulheres a erguerem-se um pouco acima da animalidade e do quotidiano embrutecedor.
Quando não havia médicos nem analgésicos, foi a oração e a cruz de Cristo que deram sentido e algum alívio a todo aquele mundo de horror. E as pessoas sabiam que tinham uma missão na vida, e Deus acolhia-as na morte. Não é calculável o que as religiões fizeram e fazem pela cultura, pelo combate pela justiça e dignidade, no exercício da compaixão e do amor. Quem não reconhece o que a Igreja faz na presente crise pelos mais pobres?
Mas a corrupção do óptimo é péssima, e lá está a perversão da religião/religiões e as suas patologias. Como não pensar no terrorismo, na guerra e na tentativa de legitimar a violência com a religião?
Há três impulsos com que o Homem tem de aprender a viver: o ter, prazer, o poder. Saber viver com eles - nisso consiste a arte de viver.
O mais difícil é o poder, porque ele é o maior afrodisíaco. Por isso, de modo geral, Deus é pensado como omnipotência. Significativamente, na revelação cristã, Deus não se apresenta imediatamente como omnipotente, mas como Força infinita de criação e de amor. O Evangelho diz: "Sabeis que, nas nações, os poderosos mandam e dominam; entre vós, não será assim: quem quiser ser o primeiro deve ser o último." "Eu não vim para ser servido, mas para servir", disse Jesus.
Assim, quando a Igreja se identificou como instituição de poder, começou o afastamento do Evangelho. Até Constantino e Teodósio, os pagãos diziam, referindo-se aos cristãos: "Vede como eles se amam." Depois, surgiu o poder sacro, à maneira do poder imperial, e tudo se modificou. Não é possível a uma pessoa que conheça minimamente o Evangelho e a História deixar de fazer perguntas como esta: como é que o Evangelho de- sembocou num Papa chefe de Estado, com uma Cúria imperial, e bispos a viver em palácios?
Quando se toma o poder sacro em nome de Deus, os perigos são imensos e terríveis. Até surge a tentação de "administrar" Deus. Então, quem não está com os "administradores" de Deus é herético e condenado. Lá está o perigo do fanatismo: somos a única religião verdadeira e todas as outras devem ser combatidas. Lá está o impedimento da liberdade de pensar e a censura. O pior é a imagem de um deus mesquinho, cruel, violento, causa de ateísmo e de infelicidade.
Esses "administradores" da religião e do próprio Deus arrogam-se também o direito de administrar a moral e são eles então quem determina o que é bem e mal, o que se deve fazer e não fazer. E lá está o controlo do prazer pelo poder, porque o prazer subverte o poder. Lá está então uma sexualidade envenenada, a proibição dos contraceptivos, o celibato eclesiástico obrigatório e a sua grandeza e miséria. Lá está a pedofilia dos clérigos, ocultada para tentar preservar a instituição-poder.
E ainda: quem detém o poder deverá, no quadro desta lógica, ter também mais teres e privilégios.
A questão da religião é mesmo a religião (o conjunto de atitudes e organizações na relação com Deus): o que a religião fez e faz de Deus e como usou e usa o seu nome na sua relação com os humanos e destes com Deus. Para a felicidade, é preciso voltar ao Evangelho.
publicado por Tiago Mendes às 00:36 | partilhar