Pedro,
Vê lá se te interpretei bem.
ONG bem intencionada (muito bem intencionada, diria) = "Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita" 1Cor, 13, 3.
Cristão «espiritualista» = "ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou" 1Cor 13, 2.
A forma distintiva como o cristão é chamado a actuar no mundo: "Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza".2Cor, 8, 9.
A Encarnação não significa um Deus que, assumindo a natureza humana, penetra na história total dos homens? A Redenção não será omnicompreensiva?
Pode não ser especificamente cristão, mas judaico-cristão. A verdade é que o Evangelho mantém as exigências de justiça dos Profetas.
"Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?" 1Jo, 3, 17
Flores??
P.S. Depois disto será que alguém ainda visitará o Blogue?
Hugo, concordo com tudo o que dizes, mas atenção: o meu ponto era que as exigências da justiça e do amor ao próximo, como lhes chamas e bem, nascem da exigência de justiça e de amor para com a Verdade. A Encarnação é essa Verdade feita história. E a Verdade não é fácil de seguir porque somos livres, temos a possibilidade de pecar. Ignorar que este é o maior drama da existência humana é passar ao lado do essencial. Foi a isso que chamei flores, palavra que não tem qualquer sentido pejorativo se a recolocares no contexto. Apenas significa que a acção social do cristão em nada se distingue da de um não cristão se não vem da fé, que é o amor à Verdade na minha vida e na tua. Caso contrário, para quê ser cristão? Para não comer carne à sexta-feira, fazer parte da tal internacional da repressão e perseguir os/as pecadores/as? Julgo que concordarás com isto. E, sim, acho que este blogue continuará a ser lido porque este e outros debates valem a pena.
Um abraço
1. "A consciência do pecado e do perdão."
Consciencia "e" aceitacao (daquilo que se torna consciente), diria eu. (Esta' de certo modo implicito no contexto, e' verdade, mas quanto mais explicito melhor).
2. "A certeza de que o Homem cai e de que Deus o reergue (ou redime, para usar o termo teológico exacto)."
Nao que "cai", mas que "pode cair"; nao que "reergue", mas que, na contingencia de queda efectiva de um homem, que "pode reerguir". (Ou nao ha' a possibilidade de "castigo eterno"?).
3. "Hugo, concordo (...) A Encarnação é essa Verdade feita história."
Percebo que estas (Pedro) implicitamente a falar na perspectiva de um "cristao", ou seja, que o que esta' implicito e', mais exactamente, isto:
"(...) o meu ponto era que as exigências da justiça e do amor ao próximo, PARA UM CRISTAO, nascem da exigência de justiça e de amor para com a Verdade CRISTA. A Encarnação é, PARA UM CRISTAO, essa Verdade feita história."
Ou nao?
4. "E a Verdade não é fácil de seguir porque somos livres, temos a possibilidade de pecar."
Exacto: nao "fatalidade", mas sim "possibilidade" (ver ponto 2).
5. "Ignorar que este é o maior drama da existência humana PARA UM CRISTAO é passar ao lado do essencial."
Nao e' demais voltar a apontar o "sub-grupo" a que penso que tu te diriges - de outro modo, pareceria que pretendes que a "Verdade PARA UM CRISTAO" seja a "Verdade universal". Ou e' isso que pretendes? (E' uma pergunta, nao uma provocacao, ate' porque percebo que uma crenca em tal seja tendencialmente uma crenca "universalizante", mas e' possivel distinguir algumas tonalidades diferentes aqui, quer-me parecer).
.........
Quanto 'a discussao destes temas, nao tenho nada com isso, obviamente, mas julgo que num espaco publico nao ha' grande valor acrescentado em falar de coisas eminentemente 1) intimas e 2) relacionadas com a fe', portanto, para la' de qualquer discussao racional.
(Just my three cents)
6. "(...) nascem da exigência de justiça e de amor para com a Verdade."
Falas de "justica para com a Verdade" ou de "justica" per se? Julgo que so' faz sentido falar de justica "no seio" da Verdade, e nao "em si mesma" (porque ela e' [ontologicamente] dependente da "Verdade") nem "para com" a Verdade. A nao ser que seja no sentido de "fidelidadde", de fazer "jus 'a" Verdade, mas nesse caso nao ha' informacao adicional relativamente 'a mencao do "amor" (para com a Verdade), que implica, em si mesmo, uma adesao, uma fidelidade e entregas totais 'a Verdade.
7. Obviamente que a "Verdade" a que te referes nao tem um sentido epistemologico mas antes relacionado com a fe'. E' isso que te permite, em coerencia, referir uma falha para com essa Verdade como um "pecado" e nao apenas um "erro".
Esta distincao parece-me interessante na medida exacta em que te perguntava sobre a "universalidade" que pretenderas, ou nao, atribuir a essa ('a tua, em certo sentido) "Verdade"? Porque se fosse espitemologica, teria necessariamente de ser universal; sendo religiosa, pode ou nao se-lo, e e' interessante perceber qual a visao de cada um.
8. "Apenas significa que a acção social do cristão em nada se distingue da de um não cristão se não vem da fé, que é o amor à Verdade na minha vida e na tua."
E' verdade. Nesse sentido, sera' facil argumentar que certos actos "nobres" praticados por um cristao poderao ter menos "merito", na medida exacta em que correspondem a um comportamento tendo em vista uma recompensa futura (isso nao e' so' aplicavel 'a religiao crista, naturalmente), e, portanto, inerentemente, uma motivacao instrumental. Claro que podemos fazer rodeios varios quanto 'a interpretacao do "Amor Cristao", etc, mas subjacente 'a logica (crucial, primordial, primeira), do pecado, do "crime e castigo", esta' uma moral onde o "castigo" tem uma componente essencial como "incentivo" de um comportamento correcto.
8. "Caso contrário, para quê ser cristão? Para não comer carne à sexta-feira, fazer parte da tal internacional da repressão e perseguir os/as pecadores/as? Julgo que concordarás com isto."
Julgo que aqui acabas por trair um pouco o que querias dizer - ou nao? Repara que usas a expressao "para que ser X?", o que apela a uma "escolha", "consciente" - e, necessariamente, envolvendo uma comparacao de custos e beneficios. Ora, eu, se bem me lembro, julgo que uma das ideias principais e' que essa fe' nao e' - ou nao deveria ser - uma "escolha", mas sim uma "evidencia". Talvez uma "graca", uma "luz", mas nao quero usar palavras eventualmente desapropriadas em vao.
PS: embora nao haja necessidade de o dizer, talvez nao seja desapropriado esclarecer que sou agnostico, nao seguidor, hoje como ontem, de qualquer religiao.
zé a 24 de Novembro de 2006 às 16:06
Caro Tiago,
diga-me só porque é que uma discussão sobre a fé não pode ser racional?
Esta discussão demonstra que isso n é vdd.
Caro Ze',
A fe' esta' inerentemente para la' de uma discussao racional. O que eu fiz nao foi discutir "fe'", mas sim palavras e argumentos utilizados numa discussao que versa, entre outras coisas, sobre fe'. Nao sao por isso comentarios do foro da fe', mas apenas do uso da linguagem e da logica para exprimir ideias com ela relacionadas.
Repare que eu nao digo que "nao e' racional" discutir fe'. Claro que e' possivel discutir fe' de forma racional. Se quiser, de forma "coerente" e "consistente", que foi a minha intencao anterior. Mas isso diz respeito 'a "logica interna" do que quer que seja que entendamos por "fe'".
Mas quando falamos da "existencia" ou nao da fe', entao, isso esta' "para alem da racionalidade". Esta' a um nivel diferente, nao e' explicavel por construcoes racionalistas - pelo menos nao sem que elas tenham uma base aprioristica (Espinosa e outros bem que tentaram, mas e' sempre falacioso achar que se "explicou" a fe' ou o que quer que seja que esteja no dominio da metafisica com argumentos "fisicos", "empiricos" - se quiser, "humanos". Por definicao, ela esta' "para la'" da racionalidade).
Nestas coisas da Cristandade sigo Hannah Arendt na sua tese sobre Santo Agostinho
"neste acolhimento amoroso, a criatura reconciliou-se com Deus, regressou do mundo para si e renegou o mundo e a si própria enquanto ser-do-mundo" (pp. 111)
zé a 24 de Novembro de 2006 às 17:00
Caro Tiago,
embora a fé esteja para além da razão, n deixa de ser razoável.
Contudo, a fé na deixa de ser um Dom e por isso n pode ser apenas contruida pela razão.
Mas este facto n exlcui a razobilidade de uma discusão de fé.
Eu acreditar em Cristo é sem dúvida uma Graça, n sendo por isso fruto da razão. Contudo tenho razões que sustentam a minha fé, podendo por isso discutir sobre ela.
Para se perceber bem este ponto vale a pena ler o discurso do Papa Bento XVI em Ratisbona (claro que também na faz mal ouvir uma explicaçãozinha sobre o mesmo de qm percebe mais do que nós destes assuntos)
"embora a fé esteja para além da razão, n deixa de ser razoável."
Vejo que afinal concorda que a fe' esta' "para alem da razao". Eu nunca disse que ela era "irrazoavel". Tambem nao diria que e' necessariamente razoavel - o que o Ze' diz. Diria antes que e' "passivel" de ser razoavel, consoante a postura da pessoa em causa.
Eu nunca sugeri que quem tenha fe' nao pode explicar isso (este isso e' a crenca "pessoal") usando argumentos A ou B. Nao me referia 'a fe' duma pessoa em particular, mas sim ao conceito (despersonalizado) de "fe'".
Ou acha que eu iria sugerir que toda e qualquer pessoa que tem fe' apenas tem fe'... "porque sim", e nao por motivos A, B, C e D? Para isso nao teria vindo aqui.
Quanto a argumentos de autoridade relativos a estes temas e 'a avaliacao da postura do agente que argumenta, nao posso senao deixar-lhe um pouco de Fernando Pessoa:
«O que há de bom ou mau em qualquer crença, qualquer, é o modo como se crê. O bem ou o mal estão no psiquismo do crente, não na crença.»
Lukachenko a 24 de Novembro de 2006 às 19:15
Só para adoçar um pouco a discussão...
Milan Kundera, na sua obra "A insustentável leveza do ser", logo na primeira parte do livro diz: "se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. que ideia atroz!".
É nesta posição que eu pessoalmente me encontro quanto à discussões sobre a fides e a ratio, isto é, para quem a vida só ganha sentido e é iluminada por Cristo, todo o resto (mas todo o resto mesmo) é um belo jardim numa primavera. Não é que não valha a pena discutir sobre as duas realidades que, na verdade, são humanas (uma mais que a outra), mas ao discutí-las convém não reduzir os conceitos de uma (neste caso da fé) às concepções acessórias da outra. Por isso a comparação "mal intencionada" da caritas christiana às ONG´s não pode ser interpretada de outra maneira do que sendo um ataque à originalidade e autenticidade de vida que um cristão digno de tal designação é chamado a viver. Disse!