Johann Gottfried Herder, 1774.
No artigo “Portugal à chuva”, publicado no Domingo passado, Vasco Pulido Valente referiu-se pela enésima vez ao “atraso e à miséria” portuguesa e aos “iludidos” pela possibilidade de reformismo —uma impressionante colecção de ingénuos, que ascendem ao poder político e tentam sem sucesso emendar a pátria. O flagelo acentuou-se após 1974:
Desde o princípio que a história da democracia portuguesa, que estranhamente se imagina "europeia", tem sido uma comédia de erros, que o passado impõe.
Pulido Valente escreve sobre Portugal com um desespero romântico, no sentido filosófico do termo. Para Herder, a nação era o único veículo susceptível de proporcionar ao indivíduo a plena realização do seu telos humano. As nações nasciam, floresciam, definhavam e morriam. As nações tinham uma “voz” (a cultura nacional) e uma qualidade transcendental, que tornava a metáfora orgânica real no sentido político. Ao contrário de Herder ou de Fichte, Pulido Valente não perfilha uma concepção orgânica da comunidade política, mas refere-se frequentemente a Portugal em termos semelhantes. Porém, Herder era optimista, Pulido Valente é de um fatalismo historicista: o
Zeitgeist lusitano deprime e oprime os portugueses e a “voz” da pátria é um murmúrio lúgubre que condena de antemão ao fracasso todos os esforços de reforma política. Aliás, a condição do corpo político nacional reduz a aspiração reformista ao exercício desesperado de insuflar vida num moribundo. Na comédia de erros, os governantes desempenham o papel de idiotas; sempre os primeiros a “acreditar” e os últimos a compreender.
Se esta fosse uma descrição aceitável da actividade política em Portugal, o país era de facto uma tragicomédia. Sucede que, com algumas excepções e independentemente de regime ou constituição, os governantes dos últimos dois séculos dedicaram-se a outra tarefa, que não deve ser confundida com reformismo: a construção, ampliação e manutenção de um aparelho de Estado. Não de um estado weberiano dotado de uma burocracia hierárquica e racional, mas de um estado corporativo, autoritário e centralizado. E na tarefa de construção de um poder político abrangente, os governantes portugueses não fracassaram. Pelo contrário: foram demasiadamente bem sucedidos.
Em Portugal a sociedade fornece os meios, as finalidades são decididas preferencialmente por mecanismos políticos e sindicais (as ordens profissionais são sindicatos de interesses). Considerando o carácter do Estado português, o reformismo é necessariamente
devolutivo. Ora com a excepção do programa de reprivatizações iniciado por Cavaco Silva (e mesmo assim excessivamente faseadas no tempo e corporativamente negociadas), poucas foram as medidas políticas orientadas pelo princípio fundamental de devolução aos portugueses da responsabilidade sobre a condução das suas vidas. Note-se: aos portugueses, não a novas entidades fictícias, como as regiões administrativas, cujo objectivo é repartir o poder dentro do Estado, para manter e até ampliar o controlo político sobre a sociedade. Agora, com a “gaiola de ferro” do Estado português ferrugenta e a ameaçar ruína, o problema de engenharia que consome a energia política consiste em encontrar uma forma de sustentar ainda um pouco mais a rede de privilégios públicos e corporativos. Não se trata portanto de reformar, mas precisamente do oposto: como evitar o reformismo.
Aparentemente, a persistência desta orientação política deveria proporcionar o aparecimento de alternativas ao consenso socialista e corporativo. Para que uma alternativa reformista seja bem sucedida, terá de emergir do interior das forças partidárias existentes. Sem o lastro de sedimentação institucional, os novos partidos são encarados pelo eleitorado como aventuras bizarras e remetidos para uma condição de marginalidade representativa. Mas basta ver um telejornal qualquer para perceber o triste destino que provavelmente espera um projecto reformista que se apresente a votos.
O problema começa e acaba no apetite ilimitado dos beneficiários que controlam politicamente o regime e que sabem perfeitamente que a trajectória actual não é sustentável, mas que nunca abdicarão dos seus privilégios: são as Pompadours do socialismo corporativista. À luz da coligação de interesses faccionais que domina o aparelho de Estado, compreende-se melhor a inexistência de reformismo político e a comédia de erros revela a sua verdadeira natureza: os esforços políticos de "racionalização" não são reformismo, são os “sacrifícios” necessários para prolongar a "festa" do socialismo corporativo. Alguns subgrupos de beneficiários do regime visados pelas medidas de “racionalização” protestam sem vergonha nem decência, indiferentes à ruína do aparelho estatal e ao fardo fiscal suportado por toda a sociedade, que se prolongará muito para lá do fim deste regime. Portugal já está politicamente “à chuva”, mas nada que se compare com o dilúvio que inevitavelmente se seguirá ao final do festim. Se calhar, também sou um fatalista.