Os políticos e burocratas dificilmente evitam chavões quando se referem ao admirável futuro: é a “sociedade do conhecimento” que está em preparação, onde
todos seremos “qualificados” e com elevado “potencial”; é também a libertação da “escravidão” do trabalho físico, que nos momentos oníricos se torna numa sociedade sem trabalho – a sociedade de lazer que nos espera no fim da história. Uma análise destes chavões revela a respectiva vacuidade.
As comunidades políticas recebem, produzem e destroem conhecimento. Classificar uma comunidade política, presente ou futura, como “sociedade do conhecimento” envolve um juízo de descontinuidade, de oposição às formas de organização política prevalecentes no passado, que são, presumivelmente, as sociedades do desconhecimento. Trata-se de uma mistura de estupidez estruturalista e ignorância tecnocrática, cujo contraponto é a estupidez irracionalista dos que acreditam que o conhecimento gera poder e que o poder gera conhecimento, num ciclo inquebrável de dominação humana que necessita de ser destruído, alargado aos discursos culturais “alternativos” e que a “opressão da razão” deve ceder prioridade à imaginação poética.
A oposição entre trabalho físico e trabalho intelectual também envolve dois juízos de valor implícitos – e ambos errados. O primeiro é que o trabalho físico dispensa qualquer actividade mental relevante; o segundo é que o trabalho intelectual se baseia essencialmente em esforço mental complexo. Por último, é fácil compreender que a “sociedade de lazer” é apenas outra forma de designar a mesma abstracção materialista que a sociedade sem classes, a última etapa da progressão humana em direcção à “verdadeira” liberdade. Os historicistas marxistas acentuam a centralidade das condições de produção; os adventistas do lazer eterno acentuam a centralidade das condições de consumo.
Vem isto a propósito de um dos mais interessantes ensaios que li este ano: “
Shop Class as Soulcraft”, de Matthew B. Crawford, publicado pela
The New Atlantis. Soube da existência deste ensaio através da crónica de David Brooks, para o The New York Times de 14 de Dezembro, mas só tive oportunidade de o ler no dia de Natal. Crawford começa por notar que nas últimas décadas houve um notório decréscimo na utilização humana de ferramentas e uma acentuação da passividade nos modos de vida. A redução das competências implica uma redução da capacidade de agência: a passividade torna-se dependência. O objectivo fundamental do ensaio de Crawford é a identificação dos motivos que levaram a uma notória diminuição da preparação escolar para o desempenho de determinadas tarefas essenciais à autonomia prática e moral.
A capacidade de desempenhar bem uma tarefa que se constitui como finalidade em si própria, tem no racionalismo inspirado em John Dewey e em Frederick Taylor o seu adversário primordial. O objectivo racionalista é dissociar completamente o trabalho humano dos aspectos cognitivos de experiência e aprendizagem, reduzindo-o a um processo decomponível em tarefas abstractas, rotineiras e destituído de decisões autónomas, que são concentradas na administração empresarial – a elite dos
cognoscenti. Tal como Oakeshott recordava, o racionalismo moderno procura reduzir a totalidade do conhecimento ao conhecimento técnico, suprimindo o conhecimento prático, precisamente porque este não pode ser deduzido a partir de conjunto de regras criadas
ex novo, de aplicação
puramente mecânica e
universal. Como tal é incompatível com o sistema de produção assente na lógica de “linha de montagem”.
Conscientemente ou não, foi-se também sedimentando a equivalência entre trabalho intelectual e esforço mental, com a correlativa equivalência entre trabalho manual e esforço físico. Ambas são erros conceptuais: o trabalho intelectual está a ser progressivamente esvaziado de exigência mental e o trabalho manual exige competências intelectuais que podem ser extremamente sofisticadas. A este respeito, Crawford cita um exemplo interessante: um programa de computador desenvolvido para facilitar a construção de
origami (
HyperGami) revelou-se particularmente ineficiente em determinadas figuras geométricas. Tratavam-se de formas cuja solução de construção não podia ser obtida por processos algorítmicos porque o modelo não podia ser completamente especificado: havia restrições, detectáveis apenas através da prática, que não eram formalizáveis. A conclusão é generalizável: há conhecimento prático que não pode ser reduzido a conhecimento técnico e sem o conhecimento prático resultante da experiência acumulada – porventura ao longo de gerações – não é possível executar determinadas tarefas com qualidade.
Sobre o progressivo esvaziamento do trabalho intelectual, basta pensar na actividade esmagadoramente rotineira da generalidade das organizações, quer sejam públicas ou privadas. A título de exemplo corroborante, posso citar uma experiência pessoal. Há alguns anos, fui consultor de um ministério; no decurso da aplicação de uma importante reforma legislativa, foi necessário realizar um exercício de optimização espacial de recursos humanos. Os decisores políticos relevantes confiaram a tarefa a uma empresa de consultoria, tendo-me sido solicitado o acompanhamento dos respectivos trabalhos. Os elementos da consultora efectuavam fundamentalmente tarefas de recolha de dados, que depois serviam para calibrar o modelo de optimização; mas o modelo era “fechado”, ou seja: o algoritmo vinha “pronto a usar” e não era acessível aos consultores que o utilizavam. Este tipo de situação não é caso único, nem é especificamente portuguesa: como refere Crawford, na generalidade das organizações há uma tendência para a crescente concentração do conhecimento técnico numa pequena elite.
O racionalismo moderno encontrou aliados inesperados e improváveis na pós-modernidade inspirada em Nietzsche, para quem todas as certezas são apenas ilusões decorrentes de “essencialismos” (por um motivo inexplicável, esta máxima não se aplica à certeza de que todas as certezas são ilusões) e os factos “não existem”: apenas há discursos “alternativos” e não comparáveis. A pós-modernidade irracionalista detesta aquilo a que Crawford chama
o infalível julgamento da realidade: aviões que voam em segurança, infra-estruturas físicas como edifícios e pontes que não abatem no decurso da sua utilização normal, ou até uma simples cadeira, confortável e duradoura, expõem de forma demasiadamente real o absurdo do relativismo epistemológico e cultural. Opositores declarados da civilização ocidental, sabem, como Crawford sublinha evocando uma frase de Hannah Arendt, que a
durabilidade dos objectos produzidos pelo homem é uma origem da familiaridade do mundo, dos seus costumes e hábitos de relacionamento, entre homens e objectos, bem como entre homens e outros homens. O provisório gera a instabilidade propícia à inovação, geralmente liderada por um
capo político, enquanto que a familiaridade gera conforto e cria uma disposição a manter o que é satisfatório, dificultando o tumulto da inovação permanente.
Racionalistas e irracionalistas, nas suas motivações distintas mas convergentes, instrumentalizaram os sistemas educativos ocidentais, tentando eliminar as instituições dedicadas à transmissão do conhecimento prático e forçando a evolução na direcção de uma crescente abstracção teórica, onde a realidade constitui uma interferência indesejável.
Depois de ler o ensaio de Matthew Crawford, decidi ver um documentário há muito (a)guardado:
Ballets Russes, a história das companhias de bailado que nasceram a partir da companhia original fundada por Sergei Diaghilev (consulte a
lista de compositores e pintores que ao longo dos anos colaboraram com os
Ballets Russes). Na cena inicial assiste-se ao reencontro de alguns dos elementos que ao longo dos anos integraram as duas companhias. Nathalie Krassovska, então com 81 anos, faz alguns exercícios:
I’m doing a little barre. Two days I didn’t do barre. Krassovska, cuja mãe e avó materna também haviam sido bailarinas – a mãe no Ballet Bolshoi – recebeu delas o gosto e o conhecimento prático da dança. Tal como ela, quase todos os antigos bailarinos entrevistados tinham mais de 80 anos de idade e apesar disso a grande maioria continuava a ensinar diariamente. São vidas inteiras dedicadas ao aperfeiçoamento da prática da dança, numa procura permanente da excelência. Viajando pelo mundo através da II Guerra Mundial, apesar das dificuldades financeiras e das divergências pessoais, os
Ballets Russes renovaram a tradição da dança e influenciaram decisivamente o bailado contemporâneo. Quanto a Crawford, preferiu trocar o
think tank de Washington onde trabalhava por uma oficina de reparação e restauro de motos antigas. Apesar dos muitos que desistem e dos muitos mais que nem sequer tentam, prefiro terminar o ano de 2006 evocando os exemplos daqueles que defenderam a sua autonomia pela escolha de um modo de vida e que tiveram a disciplina necessária para procurar realizar nele o mais elevado potencial humano.