Era inevitável. A propósito da recente beatificação de 498 mártires da Guerra Civil espanhola por Bento XVI, a esquerda blogosférica clama que é um escândalo fazer a coisa na semana em que o governo de Zapatero leva a votos a Lei da Memória, destinada justamente (esperemos...) a reabilitar as vítimas do franquismo.
O
Nuno Ramos de Almeida, na sua candura (restos dos amanhãs que cantam?) estranha a "coincidência" e que não sejam também beatificados os muitos padres bascos mortos pelos nacionais por se manterem "leais aos direitos do povo basco", o que indiciaria estarmos diante de uma "beatificação política e não religiosa". Eu não sei em que mundo é que o Nuno Ramos de Almeida vive, e também não sei se ele sabe (talvez num mundo onde as beatificações nunca são susceptíveis de leituras políticas), mas aconselho-o a informar-se bem sobre estes padres "leais aos direitos do povo basco". É capaz de descobrir alguns carlistas, que é como quem diz os miguelistas lá do sítio, gente que detestava os espanhóis por serem mestiços de mouros e terem acabado com os foros feudais do "povo basco". Gente, portanto, mais reaccionária que o próprio Franco. Na volta, até foi por isso que os franquistas os assassinaram. Não sei é se será um grande motivo para beatificações: alguém podia ver no caso uma manobra política para santificar o carlismo. E nós não queremos beatificações políticas, pois não?
Já o
Daniel Oliveira, sempre pronto a envergar a toga de moralista, acusa a Igreja de "falta de vergonha" porque, às suas "simpatias pela ditadura franquista", junta agora o "esquecimento" das vítimas do outro lado. Convém, no entanto, que ele se lembre do que foi o o outro lado.
Em Espanha, tal como em Portugal, em França e no México, a República de então foi violentamente anticatólica. Não quero maçar-vos com pormenores para não me tornar o grande educador dos intelectuais fracturantes, mas lembremos factos. Estima-se que, durante a Guerra Civil, entre oito mil a dez mil padres, religiosos, freiras e leigos tenham sido mortos, por vezes depois de torturados, pelo simples facto de pertencerem à Igreja. Os números não são conhecidos com todo o rigor porque as valas comuns também se tornaram uma prática corrente dos
rojos. Além disso, estes assassínios aconteciam ao sabor da fúria dos célebres comités revolucionários. Não havia qualquer tipo de processo ou julgamento, o que dificulta um pouco a contagem. Muito desorganizados, estes latinos. Os alemães é que sabiam.
Na verdade, a perseguição começou ainda antes da Guerra propriamente dita. Entre Fevereiro de 1936, data da vitória da esquerda nas eleições, e Julho, início da sublevação militar da direita, foram mortos 17 padres e saqueados vários conventos em Madrid, Barcelona e Valência. No das carmelitas da capital catalã, os túmulos das freiras foram profanados e os cadáveres expostos, como se pode ver pela imagem que, com a "falta de vergonha" típica da minha malta, submeto à sensibilidade de vexas.
A partir de Julho, o ritmo de execuções tornou-se frenético. Cito Andrea Riccardi, que me fornece estes dados: "De 18 de Julho até ao final do mês, as vítimas do clero foram 861; em Agosto 2077, a uma média de 70 por dia. Durante o Outono, os assassínios continuaram, se bem que em número inferior, e desde o princípio de 1937 caíram sensivelmente" (
O Século do Martírio, Lisboa, Quetzal, 2002, p. 316).
Não tão sensivelmente, porém, que José Diaz, secretário-geral da secção espanhola da III Internacional, não pudesse afirmar com orgulho em Março de 1937: "nas províncias em que temos o poder, a Igreja já não existe. A Espanha superou em muito a obra dos soviéticos." Para certas dioceses, o massacre foi realmente metódico. Em Barbastro, por exemplo, dos cerca de 120 padres que havia antes da guerra, sobravam 1
2 quando esta terminou. É possível que algum tenha morrido de morte natural.
A falta de memória dos nosso
lefties, contudo, vai mais longe. Acompanhando esta imagem aqui ao lado, o Nuno Ramos de Almeida tem uma frase que vale a pena citar. "Setenta anos depois dos nazis da Legião Condor terem arrasado a vila basca de Gernika, o alemão Ratzinger vem dar uma ajudinha a um lado do conflito da memória." Até um troglodita de direita como eu percebe que o Nuno Ramos de Almeida está a acusar o Papa de ser nazi. E, por extensão, os incautos bispos que estão a fazer a saudação romana sem saber onde se meteriam setenta anos depois. Por mim, acho que ele está a confundir o Ratzinger com o Gunther Grass.
Mas a confusão maior não é essa. É que, nos anos 30 e 40, a saudação romana estava bastante difundida nas manifestações públicas de vários regimes europeus que podem considerar-se autoritários, mas dificilmente podem considerar-se genocidas. Pensem no salazarismo, para não ir mais longe. O amorável rebento da Mocidade Portuguesa que se observa aqui ao lado tem certamente a mesma queda para a estética que os verdeufémios do camarada Gualter, mas não me parece que seja nazi. Ou que seja capaz de arrasar Gernika, mesmo estando pouco consciente dos "direitos do povo basco". Só que a confusão, vinda de quem se mostrou tão susceptível à proximidade entre Hitler e o camarada Che por via de um bigode, já não se deve atribuir apenas à candura. Deve atribuir-se, com mais ou menos beatificações, à pura e simples hipocrisia.