[Este post é o esboço de um artigo que iria sair na Atlântico pelo trigésimo aniversário da morte de Ruy Belo, a 8 de Agosto. Comecei a escrevê-lo há muitos meses. Entretanto, a Atlântico acabou e o artigo, que tinha a excessiva ambição de rever toda a poesia de Ruy Belo, ficou-se pelas suas primeiras obras. Publico-o mesmo assim. É talvez o meu penúltimo post no Cachimbo, que vai fazer uma longa pausa. Agrada-me que seja sobre um poeta, um dos meus dilectos, e sobre a misteriosa alquimia da fé. Agrada-me que recorde a Atlântico, uma revista que em que investi tempo e esperança. E agrada-me dedicá-lo ao Filipe Nunes Vicente e ao Luís M. Jorge, dois leitores de Ruy Belo que conheci na blogosfera, pedindo a sua e a vossa caridade.] 1.
Uma leitura cristã de Ruy Belo. Ou, por outras palavras, a convicção de que a poesia de Ruy Belo só pode ser plenamente compreendida à luz do cristianismo. Depois de várias reedições deste poeta nos últimos anos, talvez tenha chegado a altura de olhar para a relação estreita e, apesar disso (ou talvez por isso), difícil que uniu a sua biografia à sua literatura. Não porque outros não o tenham feito, mas porque muitas vezes se considera o cristianismo de Ruy Belo um pecado de juventude, algo de residual, qualquer coisa com que ele cortou definitivamente por volta dos trinta anos e só continuou a influenciá-lo no plano formal.
A tese que vou defender é diferente. Mesmo depois de uma prolongada crise de fé e de ter abandonado a Igreja, pode dizer-se que a arte de Ruy Belo continuou a ser inspirada não só por uma temática essencialmente cristã, mas, mais do que isso, por uma perspectiva fundamentalmente religiosa. Não só as perguntas continuam a ser as de antes, como as respostas se aproximam, talvez mais do que seria de esperar, de um universo de coordenadas transcendentes: Deus, o destino, o pecado, a salvação, a morte.
2.
O percurso biográfico de Ruy Belo, no que aqui interessa, é conhecido. Nascido em 1933, licenciou-se em Direito em Lisboa e pertenceu ao Opus Dei entre os 18 e os 28 anos de idade, vindo mais tarde a abandonar aquela instituição e a entrar em ruptura com o catolicismo. Entretanto, concluía uma tese de Direito Canónico em Roma, onde viveu - de1956 a 1958 - uma época que o viria a marcar profundamente, e publica
Aquele Grande Rio Eufrates em 1961, “saindo para a rua e para o dia-a-dia com este punhado de poemas (…) no termo de dez anos de uma aventura mística”, como diria ao prefaciar a segunda edição deste livro. A sua obra começa, portanto, num clima de crise religiosa e de ruptura interior que não mais deixará de impregnar tudo o que escreve.
Isso é nítido, aliás, na escolha do próprio título de estreia, uma citação directa do
Apocalipse de S.João (XVI,12), que recorda o período de provação a que serão submetidos os crentes no fim do mundo. Embora a exegese actual faça uma leitura diferente do texto bíblico, não há dúvida de que, em Ruy Belo, se entrechocam uma sede profunda de sentido que só Deus parece dar e a dificuldade, mais tarde a recusa, em acreditar nesse Deus que parece ausente. Esta contradição dilacerante irá persegui-lo até ao fim, levando João Miguel Fernandes Jorge, no prefácio ao seu último livro (
Despeço-me da Terra da Alegria, título premonitório), a dizer que “toda a poesia de Ruy Belo circula entre Deus e a Morte, temas centrais e obsessivos (…) mesmo quando aparentemente deles permanece afastado.”
Porquê a Morte (com maiúscula)? Porque, abatida a evidência de Deus, a evidência da morte e da fragilidade dos seres torna-se, para o poeta, a fonte do sentido de tudo. Ou a interrogação sobre o sentido de tudo. “Por que diabo hei-de ser eu mais imortal que essa onda entrevista no Outono, no mar de Cascais?”, perguntava-se, em lembrança autobiográfica, no já citado prefácio de
Aquele Grande Rio Eufrates. Lembrança autobiográfica que inspira, com o sugestivo título “Para a dedicação de um homem”, o primeiríssimo poema desta obra: “Terrível é o homem em quem o senhor/ desmaiou o olhar furtivo de searas/ ou reclinou a cabeça/ ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina/ Não há conspiração de folhas que recolha/ a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro/ quando caminha pela tarde acima/ A morte é a grande palavra desse homem/ não há outra que o diga a ele próprio/ é terrível ter o destino/ da onda anónima morta na praia.”
Os motivos dinamizadores da sua poesia futura estão aqui presentes. O peso da ausência de Deus - não um Deus abstracto, mas a pessoa de Cristo, com se infere das transparentes alusões evangélicas à “cabeça reclinada” e ao “olhar furtivo de searas” - acompanha a “despedida” e o “virar decisivamente a esquina” do homem que se afasta, selando o seu “terrível destino” com o anonimato da onda que dá à praia e fazendo da morte “a grande palavra desse homem”.
A omnipresença da morte será, em maior ou menor medida, quase asfixiante no resto da obra do poeta. Em
Aquele Grande Rio Eufrates é ainda uma morte que admite redenção, apesar dessa “solidão medonha, fundamental, a solidão dos filhos de Deus” (dirá Ruy Belo, em epígrafe, com uma frase de Bernanos) que acompanha o destino humano. Como escreveu em “Homem para Deus”, mais um poema em que o título diz tudo e em que literatura e autobiografia parecem confundir-se: “Ele vai só ele não tem ninguém/ onde morrer um pouco toda a morte que o espera/ (…) O que deus terá visto nele para morrer por ele?”
É certo que esta redenção espera mais da palavra humana e da poesia do que Deus: “Está sereno o poeta/ (…) Não pertencem ao dia os gestos que ele tem/ não morrerão na noite seus assombrosos passos” (“Poema quase apostólico”). É certo que a noção de decadência, que Ruy Belo explorará mais tarde num sentido histórico-cultural, se exprime aqui, com grande propriedade etimológica, no duplo sentido de uma existência cada vez mais próxima da obsessiva morte física e espiritual (“cada dia mais morte que morte/ haverá para nós no fim dos dias?”). Mas em tudo isto há ainda sinais da presença de Deus, “Vestigia Dei” - para citar o título de outro poema de
Aquele Grande Rio Eufrates. Ainda se pode dizer que “o senhor deus é espectador desse homem”, imagem amplificada em “Composição de lugar”: “Eu sei que só tu sabes o meu nome/ tentar sabê-lo foi afinal o único/ esforço importante da minha vida/ sinto-me olhado e não tenho mais ser/ que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar/ para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida/ palmo a palmo pela tua mão ferida.” Ainda que o poeta pergunte “Não achas meu senhor que temos braços a mais/ dias a mais complicações a mais?/ para nascer e morrer seria necessário tanto?”, a resposta surgiu já um pouco antes: “Não assistisses tu a esta nossa vida/ caíssem-nos os gestos ou quebrados ou dispersos/ e nenhum rosto decisivo fecharia/ todas as palavras com que dissemos os versos”.
No entanto, esta “teoria da presença de Deus” (“somos seres olhados”, repete) não chega para alimentar uma relação suficientemente próxima com Ele. “Somos a grande ilha do silêncio de deus”, exclama, e “é esta a grande humildade a pequena/ e pobre grandeza do homem”. O poeta que fala, sempre a pretexto da morte, no “grande olhar de deus” que seria a eternidade, nunca deixou de se sentir “um fugitivo brilho no olhar de deus/ a vida havia de lho lembrar muitas vezes”. O que motiva a interrogação, menos reverente mas muito mais angustiada, de “Maran Atha” (“Vem, Senhor Jesus!”, as últimas palavras do
Apocalipse, grito de esperança na vinda de Cristo no fim dos tempos): “Eu que te vi e revi descer solene/ como um raio sobre o meu destino/ que te dei um lugar mais definitivo/ em minha boca do que a folha de outono/ teve na calçada/ quando de vez vieres que será de mim?/ E tenho a ousadia de morder-te/ à superfície do dia. Tu bem sabes/ que catedral de esperança te reservo/ Talvez já amanhã nos não saudemos sob as árvores/ e venhas sobre as nuvens/ sobre o coração sobre a morte sobre mim.”
Essa interrogação terá um eco dramático em “Quirógrafo” (“Tão vasta como o mar a nossa dor/ alguém nos poupará de nela naufragar?”), e aquela que será a mais lógica resposta num pedido de perdão que o poeta intitulou significativamente de “Última vontade”: “Perdoa se algum dia/ errámos com o coração/ Não nos deixes morrer longe de Jerusalém”. Nesta altura, os tais
vestigia Dei que Ruy Belo descobriria na sua vida proporcionavam ainda uma certa nota de optimismo à sua poesia. As coisas mudarão, mas ele ainda pode reencenar essa portentosa alusão ao choro de Cristo sobre Jerusalém: “Que importa que morramos se a tarde é de sol/ e o céu se abre às lágrimas/ que sobre a cidade choras/ (…) Que importa que morramos se o passado está certo/ se voltas para nós a mágoa que te molha a face/ de virmos de tão longe tendo-te tão perto?” (“Jerusalém Jerusalém… ou Alto da Serafina”).
3.
É neste contexto que surge, apenas um ano depois,
O Problema da Habitação.Alguns Aspectos (1962). Onde habitar, se já não há morada? Onde encontrar abrigo, calor, um ponto de referência e um fim do caminho – as funções de uma casa, afinal – se Deus não existe? O poeta sente-se deslocado, desgarrado, “estrangeiro atrás da face pelo tempo atribuída” (“Imaginatio locorum”). Para ele “não há tempo ou espaço onde habitar”, como repetirá diversas vezes ao longo desta obra.
Será certamente por isso que a dedica “ao nómada amigo do Ruy Cinatti”, como que procurando algum refúgio no
Livro do Nómada Meu Amigo desse outro autor em cuja vida e poesia se manifesta tão intensamente a condição itinerante do homem. Mas, influências à parte – e sendo certo que, a dada altura, Cinatti teve uma grande influência sobre Belo -, há relativamente pouco de comum entre os dois Ruys: um vive a viagem física como libertação do mesquinho quotidiano pátrio; o outro sofre a migração espiritual como desenraizamento inquietante e opressivo. O primeiro viaja a sua presença pelo vasto e estranho mundo; ao segundo paralisa-o a ausência do vasto e estranho Deus.
Uma ausência que tenta combater procurando na infância um tempo mais feliz, o tempo da alegria e da inocência: “Talvez eu espere simplesmente um amigo que de longe venha/ capaz de perseguir uma criança pelas ruas à infância reservadas” (“Haceldama”). Em vão, porém, porque se “outrora vinha Deus e nós dizíamos/ ouve-se o mar/ ou: há na vida ou no quintal ao nosso lado/ crianças a brincar/ agora nenhum gesto nesse alguém começa ou morre.”
O confronto desencantado com a “memória, inimiga mortal do meu descanso” (“Prince Caspian”) torna-se responsável pela impossibilidade de conceder à alma errante algum repouso e um lugar fixo, como se vê em “Quasi flos”. Neste poema, que é também o primeiro de
O Problema da Habitação, a inquietude da memória opõe-se à quietude da morte através de duas metáforas contrastantes e da nítida preferência de Ruy Belo: a casa em construção, que está no cerne do próprio título do livro e será repetida com variantes (em “Haceldama”, por exemplo, “aonde a solidão é mais visível/ e a dor perfeitamente navegável a muitas milhas da foz/ e há um grande coração em construção”) e a folha que cai no Outono, já entrevista em
Aquele Grande Rio Eufrates – tal como, diga-se de passagem, a associação aparentada, e tão cara à cultura ocidental, entre queda, pecado e castigo.
“A morte é a verdade e a verdade é a morte”, assim começa o poema, tentando talvez, na fatalidade desta máxima repetida em “O último inimigo”, sossegar o coração do seu autor. Mas logo, por entre os interstícios dessa certeza amuralhada, surge a nostalgia da infância e da sua irrecuperável felicidade: “De muito longe vinda, inviável lembrança/ indecisa nas mãos ou consentida/ por alguma impossível infância/ E a alegria é uma casa recém-construída”. O poeta dirige-se então à “folha/ dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento/ no calmo outono, o dos primeiros frios”, comparando-se implicitamente com ela na sua situação de queda e desamparo: “Sais/ do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema/ como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá//Não há outro lugar para habitar/ além dessa, talvez nem essa, época do ano/ e uma casa é a coisa mais séria da vida.”
“Imaginatio locorum” trata este tema de um modo semelhante, acrescentando-lhe a ”imaginação dos lugares” anunciada no título. A memória, porém, continua a trabalhar através de uma série de aliterações que projectam a dúvida sobre o sentido do tempo pessoal e histórico no passado tumultuoso, no presente resignado e no futuro desconhecido: “Era uma vez talvez algum país de sinos/ de sons entreouvidos no passado (…) Talvez possa chorar à periferia a beira-mar da minha vida/ talvez seja cantar o último recurso/ Talvez eu espere o mês possível entre abril e maio (…) Talvez além dos montes haja a única cidade/ a do inverno dos pinhais do vento(…) Talvez nos reste uma janela sobre a madrugada/ cingindo o rosto aos mais distantes gestos (…) talvez ainda tenha algumas tias/ talvez eu reconquiste ainda a minha tão perdida aldeia”.
A falta de congruência das metáforas que povoam este mundo implausível (de que “o mês possível entre abril e maio” constitui o melhor exemplo) acentua a dificuldade em compreender o seu sentido por meio da palavra humana e a necessidade de recorrer às paradoxais categorias de tempo e espaço da Revelação divina, mesmo depois de terem sido rejeitadas. É que, tal como o apóstolo João ao escrever o
Apocalipse, estamos “em Patmos nessa aldeia ou naquela inesquecível cidadela/ setenta vezes vista blasfemada e admirada/ sempre deserta e sempre povoada/ aonde vale a pena o pôr-do-sol/ e a palavra é mais que nunca provisória.”
O que fica de tudo isto é um desespero confuso, a meio caminho entre a solidão de quem se afastou de Deus, e portanto da felicidade devida e possível à própria natureza, e a quase obrigação de acreditar na Sua oculta presença, “rumor do mar distante”, para alcançar ainda “um pouco da verdade”: “Não temos direito à alegria nem talvez/ ao próximo rumor do mar distante/ Nas margens do Halis talvez habite ainda/ a esperança de que os deuses encham tudo/ o cheiro do jornal a tragédia da música na rua/ o coração fechado à primeira manhã/ as tardes de novembro a dor de folha em folha/ Talvez o persistente trigo esconda um pouco de verdade/ Talvez seja de Deus o nosso tempo/ E a alegria é uma casa demolida”.
A esperança transcendente, apesar da “dor de folha em folha” nas “tardes de novembro”, não desapareceu, pois, da vida do homem. Ela é mesmo associada à poesia (por exemplo, em “Prince Caspian”: “O Deus imóvel só por nossa boca fala/ através de palavras que como água correm/ canta coração justificado/ canta mais um bocado”) e à misteriosa presença do “amigo”, que já encontrámos nas “ruas à infância reservadas” e voltaremos a encontrar de novo, evocando quer o
Cântico dos Cânticos (“um verdadeiro amigo repovoa uma cidade/ um templo o coração o último jardim”) quer a perdida intimidade com Cristo que se conhece na oração vocal ou na comunhão eucarística (“a tua face, ó meu amigo, é alta como as coisas que se perdem/ e demoramos nela os nossos melhores olhos/ Aonde estás, Emmanuel, aonde?/ Eu tive-te na boca e não te conhecia/ e desejava ter aquilo que mais tinha”).
O saldo final continua a ser, contudo, de fracaso e desalento. Fracasso porque Deus, que é verdade e eternidade, se esconde atrás das dúvidas da alma que o procura e da fugacidade deste mundo frágil, deixando o problema da habitação por resolver. O poeta, dirigindo-se a si próprio ou a um interlocutor imaginário, reconhece, desanimado e em variante da fórmula já conhecida: “Em que outros novos olhos passageiros/ brilharás,/ ó clandestino seguidor de Deus?/ Por amor deste século cantar/ Não há mais folha ou casa ou alegria onde habitar” (“No túmulo de Sardanapalo”).
Saldo também de desalento, a julgar pela amarga ironia de “A mão no arado”, poema em que Ruy Belo ensaia um tom que virá a estar muito presente em
Homem de Palavra(s), ao rememorar a sua vida à luz da frase que Jesus dirige a um discípulo que se recusa a segui-lo (
Lucas IX,62: “
aquele que, depois de ter posto a mão no arado, olha para trás, não é digno do reino dos Céus”): “Feliz aquele que administra sabiamente/ a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias/ Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará (…) É triste ir pela vida como quem/ regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro/ É triste no outono concluir/ que era o verão a única estação/ Passou o solidário vento e não o conhecemos (…) É muito triste andar por entre Deus ausente// Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.”
A mesma ironia amarga de quem pergunta “não é tão agradável ser católico/ saber se nos havemos de sentar ou levantar/ quem condenar quem absolver com magnanimidade/ entre quem com que cuidados ratear a culpa pelo mais tímido gesto/ ou como converter à nossa imaculada vida Deus?”, ao mesmo tempo que anota, com uma indiferença não menos amarga, “a nespereira tão intensamente seca num quintal/ e o mar inacessível impossível de saudar/ e não amarmos Cristo de maneira inalterável” (“Rua do Sol a Sant’Ana”).
A ironia e a indiferença aparecem num ambiente já distinto de
Aquele Grande Rio Eufrates, porque a esperança se confronta agora com uma vassalagem cada vez mais exclusiva à morte, que é, lembremo-lo, “a verdade” para o poeta: “Volto-me para a morte e chamo como só Deus se chama/ A morte é um vizinho que se ama” (“O último inimigo”).
A morte que nos espreita no quotidiano mais banal, como em “Tempora Nubila”: “Deixa-me cultivar o dia apenas o meu dia/ doméstico modesto ameaçado ajardinado/ e só depois então depois morrer/ com toda a atenção que o gesto principal requer” (ou mais à frente: “por exemplo morreu/ mais um vizinho meu/ casado e até feliz/ um novo nome inútil na lista telefónica”).
A morte que nos dá a verdadeira dimensão das coisas (“e nós comprámos o jornal já nem o lemos/ porque grande só era a mínima notícia que da morte nos viera”) e até a única e inapelável medida do nosso destino efémero (“O homem é um homem derrotado/ um ser para chorar e nunca assaz chorado/ um ser para cair excessivamente levantado/ (…) É humano nascer/ é humano tombar e apodrecer”). Não é por acaso que o último poema do livro, “Figura jacente”, é um epitáfio em que o Ruy Belo relaciona mais uma vez a morte reveladora da sua autêntica -se bem que modesta- natureza com a sempre perseguida proximidade de Deus: “Meu rosto nasce desta condição horizontal/ de quem tem a cobri-lo todo o seu cansaço/ Deus teve para mim morte mais rasa/ do que a morte que o sol encontra entre as águas/ Desfez-se a curva última da estrada/ nada ficou após meus gastos passos”.
Ao chegar ao fim do caminho, em definitivo com a morte e em parte com estas palavras, Deus, apesar de “tão acessível como o mar nas praias”, deixa-lhe ainda um funesto testamento identitário na derradeira frase (”Tu és cada vez mais aquilo que tu és”). Um testamento, mas não uma morada. Um testamento, mas não qualquer riqueza. Os tempos adivinhavam-se sombrios.