Compreende-se que Peniche tenha um forte simbolismo na evocação da resistência ao Estado Novo. Era uma das prisões de máxima segurança do regime e recebia apenas presos políticos. Aqui foram presos e torturados muitos opositores à ditadura, sobretudo comunistas. E aqui se deu a mais mítica fuga das prisões salazaristas: a de Cunhal e outros nove membros do PCP, em 1960. É um lugar carregado de memória.
Os termos em que o Movimento Não Apaguem a Memória denuncia a possível instalação da pousada mostram, aliás, que não é só a frieza da história que habita aquelas paredes. Lamenta-se a "banalização de locais simbólicos". Invoca-se o "dever de memória". Condena-se "qualquer utilização que não respeite a memória dos antifascistas ali presos". Mais do que o conceito weberiano de rotinização do carisma, próximo da "banalização" temida, ouve-se o eco de uma linguagem religiosa. Tal como as primeiras igrejas cristãs se erguem sobre o túmulo dos mártires e a liturgia os recorda na Missa e nas Actas dos martírios, consagrando os lugares e as narrativas do sacrifício exemplar, também o cenário heróico da resistência à ditadura se procura separar do mundo quotidiano, dos usos profanos, dos prazeres materialistas do ócio e do dinheiro. "Qualquer utilização que não respeite a memória" é vista como um sacrilégio ou, pelo menos, "uma piada de mau gosto", como diz Irene Pimentel. A apropriação do santuário mais emblemático da luta comunista e antifascista pelo capitalismo, pelo lucro e pelos ricos seria uma verdadeira profanação .
Esta visão quase religiosa da memória colectiva, paradoxal numa sociedade que se proclama laica, está, porém, enviesada. Omite que o regime político triunfante depois do 25 de Abril não é o mesmo por que lutaram muitos dos homens presos em Peniche durante a ditadura, fossem eles comunistas, anarquistas ou do reviralho. Hoje vivemos em democracia parlamentar e economia de mercado. Não era isto o que queria o PCP. Não é isto o que quer Saramago quando diz que, afinal, o 25 de Abril não serviu para nada. Tenho até dúvidas, por vezes, que seja exactamente isto o que querem Mário Soares ou Manuel Alegre quando acusam "o neoliberalismo" de todos os males do mundo.
O que significa, portanto, que é indispensável reflectirmos sobre o que se comemora em Peniche. A luta contra a ditadura ou a democracia? Cunhal ou o 25 de Abril? O projecto comunista ou o pluripartidarismo? É claro que podemos dizer que comemoramos tudo isto. Queremos conservar aquelas pedras porque a repressão que testemunham é uma das frentes, ainda que não a única, do combate pela liberdade. Respeitamos Cunhal por causa do 25 de Abril, pelo qual lutou, apesar de Cunhal ter feito tudo para que o 25 de Abril fosse uma coisa diferente. Admiramos a determinação do PCP contra a ditadura, mas não a sua cegueira contra a democracia "burguesa". Mas a memória comporta, já o vimos, um pesado simbolismo pessoal e social. E temo que seja difícil, para não dizer impossível, conciliar memórias tão contraditórias. Afinal, Peniche é de todos nós, os que hoje queremos viver em democracia e economia livre, ou apenas da esquerda?
Semelhantes reservas, que são as de muitos portugueses, põem em causa a pureza antifascista do Forte. A democracia também consiste na prosaica existência de grandes empresas que ganham dinheiro com as férias da burguesia. Porque é que o lucro e o lazer não podem coexistir com um monumento ao antifascismo? Porque é que o passado da esquerda goza do privilégio da intangibilidade?
Da resposta a estas perguntas depende o que faremos em Peniche, mas não é só disso que se trata. Trata-se da imagem que queremos construir de nós próprios. Numa obra célebre, Françoise Choay define o património como um espelho da sociedade. Os monumentos que conservamos e o que conservamos dos monumentos dizem-nos mais sobre o presente do que sobre o passado. O património é uma alegoria da identidade colectiva. Se hoje o PCP e a Câmara de Peniche, nas mãos de um comunista, aceitam a exploração comercial de uma pousada no forte, quer dizer que aceitam as regras da economia de mercado em que vivemos, talvez em nome de um bem maior: a criação de emprego. Curiosamente, é a Associação Não Apaguem a Memória que parece recusar essas regras em nome da pureza mítica do ideal antifascista.