O relatório final do Grupo de Trabalho de Educação Sexual, coordenado pelo Professor Daniel Sampaio, que está na base do projecto de lei do Partido Socialista, recentemente aprovado no Parlamento, apresenta dois objectivos distintos (ou duas ordens de razão) para justificar o estabelecimento de um regime de educação sexual nas escolas. Um primeiro objectivo é a prevenção de possíveis consequências não desejadas dos comportamentos sexuais, como a gravidez na adolescência e as doenças sexualmente transmissíveis. Um segundo objectivo é a promoção de valores associados à sexualidade, como o compromisso nas relações afectivas e a maternidade e paternidade responsáveis.
Não é difícil perceber porque é que os dois objectivos assumem características muito diferentes. Em relação ao primeiro, as consequências não desejadas dos comportamentos sexuais são facilmente quantificáveis e a necessidade da sua prevenção é objecto de um consenso generalizado. Pelo contrário, no que se refere ao segundo, em que falamos de valores associados à sexualidade, há uma significativa ausência de consenso. Estas diferenças fazem com que a educação sexual facilmente se incline para a ordem da prevenção e o seu êxito, ou fracasso, seja medido pela redução, ou não redução, das consequências não desejadas dos comportamentos sexuais. Este efeito é perverso na medida em que não é nada evidente que a redução das consequências não desejadas dos comportamentos sexuais resulte necessariamente da adopção de uma vida sexual orientada por valores.
Qualquer pessoa atenta ao debate que nos últimos anos tem caracterizado a política nacional verifica que os portugueses têm concepções diferentes acerca do significado da vida, da família e da sexualidade. Aliás, longe de se tratar de uma divergência especificamente portuguesa, trata-se de um problema central nas sociedades de tradição democrática e liberal, para o qual a única resposta política aceitável passa por permitir que cada pessoa, ou grupo mais ou menos alargado de pessoas, possa prosseguir a sua vida de acordo com as concepções que privilegia.
No caso concreto da relação entre o poder e a educação em Portugal, a exigência de neutralidade política está patente no preceito constitucional que impede o Estado de programar a educação segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas (art. 43º, nº 2). Neste sentido, o estabelecimento de um regime de educação sexual nas escolas só é legítimo num contexto de liberdade efectiva e respeito pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde é explicitamente proclamada a primazia dos pais na escolha do género de educação a dar aos filhos (art. 26º).
Infelizmente, tanto o relatório final do Grupo de Trabalho de Educação Sexual, como o projecto de lei do Partido Socialista, procedem a uma inversão insustentável da hierarquia educativa, nomeadamente quando se atrevem a dizer que o êxito da educação sexual nas escolas exige a opinião, colaboração e participação dos pais dos alunos. Sob a capa do respeito pela vontade dos pais, esta disposição é insustentável pela razão simples de que
não compete aos pais colaborar com as escolas para o êxito de uma educação sexual definida pelo Estado mas
antes compete ao Estado colaborar com as escolas para o êxito da educação sexual que os pais escolheram para os seus filhos.
Fica claro que o único regime de educação sexual que pode ser estabelecido nas escolas, no respeito pela neutralidade exigida ao Estado no domínio da educação e pela primazia dos pais na escolha do género de educação a dar aos filhos, tem de ser antecipado por um sistema educativo em que as escolas tenham uma ampla autonomia educativa e os pais tenham garantida a liberdade de escolher a escola que manifestamente apresenta o projecto educativo - inclusivamente, no que diz respeito aos assuntos da sexualidade - que melhor se adequa ao género de educação que privilegiam para cada um dos seus filhos. Só um sistema assim constituído garante a todas as pessoas que o estabelecimento de um regime de educação sexual nas escolas não constitua uma instrumentalização do Estado para veicular uma política e moral sexual particular, que pode até ter o acolhimento de muitos portugueses mas que é absolutamente contrária às concepções do homem, da sociedade e do mundo de tantos outros.
Nota finalNo próximo dia 14 de Abril haverá uma audição parlamentar, promovida pela Comissão Parlamentar de Educação e Ciência, com vista a apreciar na especialidade o projecto de lei do PS (assim como o do PCP). Vale a pena questionar nesse dia qual a razão que levou o PS a adoptar, no que diz respeito aos conteúdos curriculares da educação sexual, um articulado legal que em tudo repete o que está escrito no relatório final do Grupo de Trabalho de Educação Sexual, excepto o
art. 4º, nº 3, al. g, onde se lê que a educação sexual deve promover o “Conhecimento das taxas e tendências das interrupções voluntárias de gravidez e respectivo significado”, quando se lê no relatório final “Conhecer as taxas e tendências das interrupções voluntárias de gravidez,
suas sequelas e respectivo significado”
(Relatório Final, 1.3.7, p. 23, itálicos meus).
Que o PS está empenhado em instrumentalizar a escola (o lugar por excelência onde todas as crianças estão obrigatoriamente reunidas) para promover uma agenda moral particular (que está em choque directo com a moral de tantos e tantos portugueses), é algo que facilmente se conclui através da consulta do projecto de lei; que o faça com o recurso à artimanha (e ao arrepio das indicações do grupo científico constituído para avaliar os contornos da educação sexual nas escolas), é revelador de como a ambição do PS em transformar a mentalidade dos portugueses não tem limites, mesmos que para isso seja sacrificada a transparência prometida pelo regime democrático e liberal ainda recentemente conquistado pelos portugueses.