No passado 27 de Janeiro, 65º aniversário da entrada das tropas soviéticas em Auschwitz e dia da Memória do Holocausto, o antigo Primeiro-Ministro israelita Shimon Peres discursou, em hebraico, no Bundestag, o Parlamento alemão. Como se a Alemanha quisesse dar voz às vítimas da tragédia na pessoa dos seus descendentes. Mas estes rituais de expiação oficial só ganham pleno sentido na perspectiva dos descendentes dos carrascos: a memória do Holocausto é hoje um elemento fundamental da identidade alemã.
A II Guerra Mundial e a sua consequência mais imediata, a separação RFA-RDA, é o acontecimento fundador da Alemanha até à Queda do Muro, com uma intensidade só comparável à Revolução Francesa ou à Declaração da Independência americana. Aqui, também há um antes e um depois na consciência colectiva. Com uma diferença: o momento das origens faz parte do presente. Muitos dos que o experimentaram estão ainda vivos, ou estão vivos os seus filhos. Nenhum outro país europeu tem uma percepção tão aguda do passado recente. Para os alemães, a história não é uma curiosidade do intelecto ou um combustível do patriotismo, mas um exercício de penitência pública. Toda a nação se autoflagela pelo passado com medo de o repetir.
Na escola, o nazismo e a Shoah são ensinados às crianças como se dão vacinas. A disciplina de História é uma profilaxia social. Os memoriais de guerra perpetuam na paisagem urbana, ordenada ao milímetro, a lembrança do caos, do fogo e da morte. Em Hamburgo, todos os edifícios destruídos em 1943 pelas bombas da Operação Gomorra (o nome diz tudo), foram restaurados - excepto a velha igreja de S. Nicolau onde hoje se acolhe, por baixo da clareira aberta entre as casas e da torre neogótica que escapou por milagre, um centro de documentação histórica. Em Berlim, em Dresden, em Colónia, monumentos semelhantes ergueram-se sobre as ruínas. No entanto, mesmo quando vítimas, os alemães não deixam de sentir-se carrascos. E, ao lado das fotografias de cidades reduzidas a escombros pelos Aliados, vemos os bombardeamentos da Luftwaffe em Londres, Coventry, Birmingham, Amesterdão, Varsóvia...
Não são só estes esqueletos de pedra que exorcizam a culpa germânica. Frequentemente, andando pelas ruas, encontramos no chão discretos quadrados de metal com as palavras Hier wohnte (aqui viveu), um nome, uma data e um adjectivo: deportiert ou ermordet. Chamam-se stolpersteine - pedras de tropeço, em tradução bíblica e directa. O nome corresponde ao do habitante judeu da casa em frente, a data ao seu nascimento e o adjectivo ao seu destino final. Por vezes, surge também identificado o campo de concentração onde morreu. Por vezes, os quadradinhos metálicos alinham-se em pequenas constelações, quando toda a família sofreu a mesma sorte. Pedras de tropeço, ainda.
O historiador Norbert Frei diz que esta esta obsessão dos alemães com a culpa colectiva é um álibi para fugir à cumplicidade individual com Hitler. O juízo pode parecer severo, mas está longe de ser uma tese académica. Enquanto em França ou na América, a geração do Maio de 68 punha em causa o presente e acusava os pais de não acompanharem os tempos, na Alemanha punha em causa o passado e acusava os pais de terem acompanhado os tempos de 33 a 45. Talvez esta feroz crítica geracional explique que a extrema-esquerda, nos anos 70, tenha chegado ao terrorismo nos países de regime fascista nos anos 30: a Itália, com as Brigadas Vermelhas, e a Alemanha, com o grupo Baader-Meinhoff. A violência das ditaduras de direita serviu sempre de justificação histórica para a violência dos revolucionários de esquerda.
Irá a reunificação ter reflexos sobre esta eterna má consciência nacional?
Há três anos, quando se comemorava outro aniversário, o do fim da guerra, a revista Spiegel dizia que sim. A última década trouxe aos alemães a novidade de, por uma vez, poderem culpar a história pelas suas desgraças. A geração que viu o Muro cair mas não o viu ser construído, ela própria filha da geração de 68, está longe de se sentir responsável pelo Holocausto (até porque os pais lhe ensinaram que a responsabilidade é uma coisa burguesa). Cresceu a pensar na divisão da Alemanha como um preço absurdo a pagar pela derrota de 45, mais absurdo ainda que as humilhações do Tratado de Versalhes. Não a ajudou muito descobrir, recentemente, que a França de Mitterrand e a Inglaterra de Thatcher se tinham oposto à reunificação, com medo da velha Deutschland uber alles. Ou que os países do Sul da Europa, incluindo a França (através da PAC), eram os principais beneficiários do esforço do contribuinte alemão para os cofres da UE, sem retorno que se visse, quando esse contribuinte alemão estava bastante mais preocupado com a ex-RDA, verdadeiro fardo do homem louro.
Talvez hoje, mais do que nunca, seja necessário ouvir hebraico no Bundestag.