Os meus Scorsese preferidos são Mean Streets, Taxi Driver, Touro Enraivecido e Goodfellas. Não há que ter medo dos consensos. Todos estes filmes têm uma marca comum: a urgência. Filmes de autor, a esticar limites estéticos e morais, tal como as personagens que os habitam. Harvey Keitel no primeiro, Robert de Niro nos outros dois e Ray Liotta no último. Casino, também muito bom, é menos urgente, produto de um realizador mais seguro e mais perfeito mas menos interessante. Aqui, a violência, mesmo quando brutal na intensidade (a cena do espancamento no milheiral), é mais inócua (comparar com a cena inicial de Goodfellas), mais estetizada. Uma abordagem da violência que atinge o paroxismo nas videoclipescas cenas de luta em Gangs de Nova Iorque: as facadas e os golpes de machado já não ferem. Scorsese, também não. Há comparação possível com a catarse sangrenta de Travis Bickle, com as fúrias domésticas de Jake La Motta, com o descontrolo maníaco de Tommy DeVitto? Não há. Scorsese deu lugar ao mestre. Depois de Goodfellas, os filmes começaram a ser realizados pelo cinéfilo apaixonado que nos levou pela mão e pelo coração através do cinema americano e do cinema italiano. Duvido que este Scorsese tivesse a audácia de filmar a trip de Ray Liotta, muito provavelmente a sequência mais radical, inovadora e influente do cinema mainstream americano dos últimos 25 anos.
Scorsese, tal como outros companheiros da geração de 70, não queria implodir Hollywood, queria ressuscitá-la. Esta tensão entre tradição e ruptura, entre a lei dos estúdios e a independência autoral, é o código genético de grande parte dos filmes daquela década que se tornaram clássicos. Os falhanços de Friedkin, Cimino e Coppola reduziram o espaço dos realizadores e, aqueles que não desapareceram, foram obrigados a renunciar a uma visão mais pessoal em favor de projectos menos arriscados para os estúdios. O Cabo do Medo é uma obra que nasce neste contexto. Spielberg terá dito a Scorsese que iria produzir o seu maior sucesso comercial e entregou-lhe este remake de um série b do início anos 60, de J. Lee Thompson. O filme, apesar de todo o virtuosismo de Scorsese, é uma homenagem, um exercício de estilo, uma obra impessoal. Anos depois, com o Aviador, Scorsese levaria ao extremo esse exercício de arqueologia cinéfila. Somos obrigados a admirar a fotografia de Robert Richardson, mas quando um aspecto técnico se sobrepõe à visão do realizador é porque este não tem uma ou é tão frágil que temos de nos contentar com o superficial. A paixão de Scorsese pela história do cinema está bem expressa no documentário A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies. Enquanto declaração de amor, Shutter Island não nos diz nada que não soubéssemos. Mais uma vez há a notável fotografia de Richardson e a montagem da eterna Telma Schoonmaker. A interpretação de diCaprio é a mais convincente das quatro colaborações com Scorsese, mas o filme é plot, plot e mais plot.
“Nos melhores filmes de Scorsese só cabe a vida inteira. Um simples enredo não chega para o realizador que ele é. Scorsese é narrador de percursos, de ascensões, quedas e redenções. Não é o tarefeiro a quem se peçam filmes d'hór-i-meia, planos eficazes, trabalho despachado e adeus-até-à-próxima. Dos seus filmes diz-se que são "character driven" porque a narrativa obedece às personagens e não aos truques do argumento. As personagens não estão submetidas às necessidades da intriga, seguem apenas as suas pulsões, quase sempre auto-destrutivas, das quais apenas uma muito católica ideia de redenção as pode salvar.” Escrevi isto a propósito de Entre Inimigos e o mesmo pode ser aplicado a Shutter Island. A violência continua inócua (a cara desfeita de um general alemão, criancinhas afogadas como nos filmes japoneses de terror, alguns sustos série b) e é fraco consolo saber que ninguém filma como Scorsese. Dele queremos e esperamos mais. Mas, pelas últimas amostras, o melhor é tirar o cavalinho da chuva e rever muitas vezes aqueles quatro filmes, da época em que o artista não brincava aos tarefeiros.