Parece que uma das grandes polémicas do defeso consiste em saber se Passos Coelho é ou não "do povo". Magna questão. Não tenho um demómetro nem sei o que é ser do "povo", mas há quem saiba: ser "do povo", dizem, é viver em Massamá, passar férias no Algarve e ir à festa do Pontal com Mendes Bota. Logo, conclui-se, Passos é "do povo" porque faz o pleno do charme indiscreto do proletariado.
Note-se que esta súbita plebeização de Passos, antigo leitor de apócrifos de Sartre e putativo candidato a uma carreira de barítono, nada deve ao eterno projecto de reconduzir o PSD à social-democracia. Para isso basta citar Bernstein. O downgrade a que me refiro, fenómeno de mobilidade social descendente também conhecido por bota-abaixismo graças à metonímica companhia de Bota, é uma táctica de objectivos tão modestos quão precisos. Primeiro, diferencia Passos de Sócrates pelo fato-de-banho, já que não se distinguem pela gravata. Segundo, diferencia Passos de Manuela Ferreira Leite, com a qual o PSD deixou de "ir para a rua", na expressão orgulhosamente lumpen de Miguel Relvas. Por fim, e not the least, permite acalmar os receios do povo, o verdadeiro, quanto ao anunciado projecto de "revisão constitucional" de Passos, acusado pelo PS e pelo Dr. Arnaut de querer acabar com o Serviço Nacional de Saúde, o ensino tendencialmente gratuito, a progressividade dos impostos e o lince da Malcata.
Estas coisas deixam mossa e o PSD desceu nas sondagens, o que certamente preocupou muito quem se preocupa muito com sondagens. De modo que a corte passista se sentiu na necessidade de convencer o povo, o verdadeiro, de que Passos é do "povo". Se Passos é do "povo", nunca faria ao povo aquilo de que o acusam. Nunca. Metam o homem em calções, salvo seja - e já ninguém lhe vai perguntar pelo lince da Malcata.
Como táctica, está muito bem. A esquerda não ousaria criticar o Passos "do povo" porque o povo é quem mais ordena. E a direita muito menos porque está tão preocupada em parecer democrática que se esquece de ser democrática. Só que a democracia, convém lembrar, não é o regime em que desaparecem as classes sociais, mas em que um político vai a votos pelas suas ideias, pelas suas propostas, pelo seu programa e não pela sua classe social. E, sobre isto, continuamos sem saber o que realmente pensa o novo PSD do SNS e do lince. Se é que pensa alguma coisa. Porque é mais fácil viver em Massamá do que pensar na São Caetano à Lapa. Mais fácil e mais classista: julgar-se "do povo" por aparecer em calções no Expresso é tão snob como julgar-se um cavalheiro por aparecer de chapéu alto em Ascot. "Todas as revoluções fazem crescer a ambição dos homens, sobretudo as revoluções que derrubam uma aristocracia", disse Tocqueville há muito tempo. Que pena não o ter dito no Pontal, em vez de escrever livros em francês.