(Fiz hoje uma comunicação ao primeiro Congresso de História e Património da Alta Estremadura, em Ourém, sobre o tema que serve de mote a este post. Deixo-a aqui: pode ser que interesse a alguém.)
O mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou da Batalha, é um dos monumentos mais célebres e estudados da história de Portugal. Parece impossível dizer algo de novo sobre ele. E, no entanto, a historiografia batalhina nunca esclareceu uma dúvida óbvia: por que razão escolheu D. João I a invocação de Santa Maria da Vitória para nomear o memorial da decisiva batalha de Aljubarrota e o panteão da nova dinastia de Avis, que começa a construir em 1388?
Tradicionalmente (Pedro Dias, Saul António Gomes, Paulo Pereira), o título do mosteiro da Batalha é atribuído a um voto de D. João I antes do combate, travado na véspera da festa da Assunção de 1385. Esta evidência, porém, é apenas meia verdade: explica o orago, mas não a invocação. Uma invocação até aí inédita entre nós, e ainda hoje rara, mas claramente ligada nos séculos seguintes à corte portuguesa e à guerra contra os castelhanos. Assim, Nuno Álvares Pereira virá a consagrar o mosteiro do Carmo de Lisboa a Nossa Senhora do Vencimento, começado a edificar em 1389, emulando, segundo Paulo Pereira, a grande obra joanina. Em1556, aIrmandade dos Caldeireiros de Lisboa, especialistas no trabalho do fogo e dos metais e portanto nas artes militares, ergue a capela de Santa Maria da Vitória, da qual D. Afonso VI se tornará juiz perpétuo depois de vencer o exército espanhol no Ameixial, em 1663. Dois anos volvidos, após nova vitória na guerra da Restauração, a coroa portuguesa funda uma capela com o mesmo títuloem Montes Claros(Borba), que no final do século XVIII, de acordo com António Henriques da Silveira, ainda tinha “hum capelão nomeado por Sua Magestade e paguo pela fazenda real”.
A relação entre Santa Maria da Vitória e a guerra não é uma singularidade portuguesa. As origens de tal culto parecem situar-se em Bizâncio, onde a imagem de Theotokos Nikopoia (a Mãe de Deus “vitoriosa” ou “que dá a vitória”) era levada pelo imperador à frente do exército quando saía em campanha contra os inimigos. Este hábito do Império romano do Oriente é talvez uma cristianização do culto que a Antiguidade greco-romana prestava à deusa Nikké, a Vitória, de que a representação mais famosa é a Vitória de Samotrácia. A figura alada da vitória acompanha também algumas representações de imperadores cristãos nos séculos IV e V, como no caso de um díptico de Honório, datado de 406, em que encima o orbe que o imperador tem na mão, símbolo do seu poder universal, e se faz acompanhar de um estandarte com a sentença "In nomine Christi, [ut] vincas semper" (Em nome de Cristo, que venças sempre).
No Ocidente medieval, a Nikipoia bizantina influencia a abundante iconografia das Virgens da Majestade, de claro significado político. Em Veneza, um ícone da Madonna Nikopoia, datado do século X e provavelmente fruto do saque de Constantinopla pela IV Cruzada em 1204, ocupa desde então lugar de destaque na Basílica de S. Marcos.
Em França, o rei Filipe Augusto funda o mosteiro de Notre Dame des Victoires perto de Bouvines, local onde em 1214 derrota uma coligação liderada pelo Imperador da Alemanha, então em conflito com o Papa, o que faz dos franceses campeões da fé, como sublinhou Georges Duby no estudo que dedicou a esta batalha tão importante para a dinastia dos Capetos.
Em Mântua, após a batalha de Fornovo, na qual a Santa Liga formada por Veneza, Aragão, o Império alemão e o Papa Alexandre VI derrota em 1495 a França, edifica-se uma igreja à Madonna della Vittoria. A imagem é pintada por Mantegna.
Tudo indica que a escolha de Santa Maria da Vitória para consagrar um monumento tão simbólico para a dinastia de Avis, fundada por um bastardo e por uma guerra contra a herdeira legítima do trono (D. Beatriz, filha do anterior rei D. Fernando), tenha o mesmo sentido de legitimação político-religiosa. O fundador da nova dinastia escolhe para nomear o templo mais importante do seu reinado uma invocação nova em Portugal e com um passado de protecção sobrenatural a soberanos que se apresentavam como defensores da Igreja contra os seus inimigos. Porquê?
Provavelmente, porque queria sublinhar a legitimação divina do seu direito ao trono. Estamos, desde 1378,em pleno Cismado Ocidente e Castela tomara o partido do Papa de Avinhão, Clemente VII, contra Urbano VI, o Papa romano. Portugal, depois de algumas oscilações com D. Fernando, declarara-se resolutamente por Roma com D. João I, em parte por influência da aliança com Inglaterra, inimiga da França na Guerra dos Cem Anos e, portanto, de Clemente VII, o Papa francês.
A infidelidade castelhana a Roma tornaria ilegítimas as pretensões do rei de Castela Juan I, o marido de D. Beatriz, ao trono português. Esta verdadeira luta entre o bem e o mal é explícita em Fernão Lopes, que vê nos acontecimentos de 1383-85 um triunfo messiânico do fundador da nova dinastia, como mostrou Margarida Garcez Ventura. A Crónica de D. João I apoda os castelhanos de “hereges”, “infiéis”, “traidores cismáticos” ou mesmo “cismaticos increos revees a Samta Igreja”. A própria vitória de Aljubarrota, alcançada de modo quase miraculoso sobre um inimigo superior em número, provaria a protecção divina ao novo rei e o seu direito - até aí duvidoso - de ocupar o trono.
A entrega do mosteiro da Batalha aos dominicanos, incansáveis pregadores contra a heresia, reafirma o simbolismo espiritual do confronto, o mesmo se podendo dizer do papel que João das Regras, próximo da Ordem dos Pregadores e um dos maiores apologistas da opção romana junto de D. Fernando e D. João I, tem nos primeiros anos de vida do mosteiro.
A consagração da Batalha a Santa Maria da Vitória insere-se, pois, no esforço de legitimação religiosa da coroa de Avis que levará D. Duarte a pedir à Santa Sé uma cerimónia litúrgica de unção dos reis de Portugal, até aí inexistente, ou a promover a canonização de Nun`Álvares Pereira, figura maior da guerra do seu pai contra Castela, e do Infante Santo D. Fernando, seu irmão, símbolo da guerra ao infiel no Norte de África. É também por esta época que surge o mito providencialista fundador da história nacional: o milagre de Ourique (no De Ministerio Armorum, um tratado de heráldica de 1416 que descreve as bandeiras das nações da Europa, entre as quais a portuguesa, e na Crónica de 1419, uma história dos primeiros reis de Portugal atribuída a Fernão Lopes). A invocação nova do memorial de Aljubarrota era acompanhada pelo aparecimento de novos santos, novos ritos e novos mitos que asseguravam a protecção divina à nova dinastia.