Morreu Bronislaw Geremek. E, com ele, são décadas de história que parecem afastar-se. Poucas biografias reflectirão tão de perto os dramáticos acontecimentos que marcaram a Europa no último meio século. Judeu, nascido em Varsóvia em 1932, escapa a Auschwitz graças à protecção de uma família católica. Como tantos outros para quem a vitória do Exército Vermelho equivale à derrota de Hitler, de ambos os lados da Cortina de Ferro, filia-se no Partido Comunista muito jovem. O compromisso político, que atravessa toda a sua vida, influencia também a escolha da carreira profissional e científica. Depois de uma curta passagem pela economia e pela sociologia (que viria a classificar de "enfadonha", aquela, e "demasiado teórica", esta), opta pela história para "compreender o mundo". Curiosamente, a história
engagé dá-lhe a primeira de várias desilusões que o obrigarão a trocar de camisola. A princípio inclinado para a história contemporânea, apresenta num seminário a tese de que o
Manifesto Comunista não passa de uma cedência de Marx ao anarquismo de Proudhon. Está-se em 1950, numa universidade onde o marxismo constitui ortodoxia reinante. A reacção gélida dos professores mostra-lhe que, se quer pensar pela própria cabeça, talvez seja melhor entregar-se a outras curiosidades. Muda para a Idade Média sem abandonar o marxismo, o que o leva a um objecto de investigação pioneiro: os pobres e os marginais na sociedade medieval ("o meu proletariado", confessa mais tarde). Dos muitos anos de trabalho sobre este tema resultarão várias obras, entre as quais
A Piedade e a Forca. História da Miséria e da Caridade na Europa, bela síntese traduzida entre nós pela Terramar.
Entre 1956 e 1958, frequenta a École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde conhece Braudel, Le Goff, Furet e outros representantes da prestigiadíssima historiografia francesa, à qual esteve sempre ligado. A amizade com Duby virá depois, nos anos 60, como nos contam ambos em Paixões Comuns, livro-entrevista datado de 1992 (1993 em Portugal, pela Asa). Conhecedor em primeira mão dos debates ideológicos que à época agitam o Ocidente, em 1968 rompe com o comunismo, protestando contra a invasão soviética da Checoslováquia e o fim brutal da Primavera de Praga. A sua reputação internacional tê-lo-á poupado a maiores dissabores.
Nos anos seguintes, com Adam Michnik, ganha o estatuto de dissidente público do regime polaco. Chega a fundar um embrião de universidade não estatal que, proibida, passa a funcionar clandestinamente em casas particulares. Em 1980, torna-se conselheiro do sindicalista Lech Walesa nas épicas greves de Gdansk, às quais vem juntar-se, de Varsóvia, com Tadeuzs Mazowiecki. O episódio é celebérrimo e o Público de hoje recorda-o em editorial. A aliança entre operários e intelectuais, que paradoxalmente confirma o marxismo-leninismo no sentido mais imprevisto, faz do Solidariedade uma máquina de liberdade. Junte-se a isto a pressão externa de um Papa polaco, outra improbabilidade histórica, e de um presidente americano com pouca fé em improbabilidades históricas, um tal de Reagan, e vemos que o Muro de Berlim começou a ruir nas margens do Báltico por esses dias.
Embora ninguém o adivinhasse ainda e a repressão seja violenta. É decretada a lei marcial, o Solidariedade é dissolvido, centenas de activistas são presos e o próprio Geremek conhece finalmente as prisões da ditadura. Mas, em 1989, perante a falência política do sistema, a gravíssima crise económica, um inquilino chamado Gorbachov no Kremlin e a surpresa do mundo inteiro, o Governo convoca estes homens para uma ronda de negociações de que resultam as primeiras eleições livres do mundo comunista. Geremek está lá e é um dos protagonistas do acordo histórico. As eleições dão uma vitória esmagadora à oposição democrática. Mazowiecki é designado Primeiro-Ministro e Geremek líder parlamentar da maioria. Há quem diga que a Polónia ainda não estava preparada para um chefe de Governo não católico e ex-marxista...
Ocupa o lugar durante um ano. Com o fim do Solidariedade e o início do sistema partidário, funda a União Democrática e, a seguir, a União da Liberdade, uma coligação com os liberais. Em 1997, por este partido, ascende a Ministro dos Negócios Estrangeiros, cargo em que põe o velho talento de negociador ao serviço de uma nova transição: a entrada da Polónia na NATO e na União Europeia. Cumprido o desígnio nacional, é eleito eurodeputado. Poliglota, uma trivialidade entre os compatriotas, e europeísta convicto, uma raridade entre os compatriotas, Estrasburgo surge como a sua vocação natural. Mas a história, que o persegue, nem aí lhe dá descanso. A eleição para a Presidência da República e para o Governo dos gémeos Kaczinsky, arautos de uma direita sombria, mergulha a Polónia num ajuste de contas com o passado de que a "lei da lustração" é o instrumento oficial. Nem Walesa escapa ao labéu, sempre negado, de ter sido informador do regime comunista. Geremek, porém, recusa fazer o depoimento exigido, argumentando que nenhuma democracia pode impor a obediência a uma lei injusta.
Antígona no século XXI.
Morre em tempos incertos e a sua voz lúcida vai fazer-nos falta.
Pormenor simpático: Antígona fumava cachimbo.