A morte da ópera

[Nota: texto longo]

Tal como fez em anos anteriores, David Brooks, um dos meus cronistas favoritos, atribuiu nas suas duas crónicas mais recentes os ‘Sidney Awards’ –o prémio fictício com que distingue os melhores ensaios publicados em 2007. Não há restrições temáticas nem de qualquer outra espécie: os ensaios escolhidos por Brooks cobrem assuntos extremamente variados e têm em comum apenas a elevada qualidade. Também não há ‘vencedores’: há apenas a mediação de opinião de Brooks, traduzida num breve resumo de cada um dos ensaios, resumo que simultaneamente apresenta o texto e esclarece os motivos da escolha.

De entre os ensaios eleitos há um que é a minha escolha para ensaio do ano de 2007: “The Abduction of Opera”, de Heather MacDonald, para o número de Verão do City Journal. Muitos recordar-se-ão do escândalo ocorrido em 2006, quando a Deutsche Oper de Berlim cancelou diversas representações da ópera de Mozart Idomeneo. Na encenação de Hans Neuenfels, o rei Idomeneo carrega um saco com as cabeças decepadas de Cristo e Maomé, entre outros. As ameaças de violência feitas por grupos islâmicos assustaram os responsáveis da Deutsche Oper e colocaram a discussão no plano político da liberdade de expressão. Infelizmente não era essa a questão relevante. Poucos se lembraram de perguntar e ninguém foi capaz de explicar, a começar pelo encenador, o que raio faziam as cabeças cortadas de Cristo, Maomé e Buda a ‘passearem’ num saco, numa ópera cujo libreto do séc. XVIII se inspira num episódio da mitologia grega. Bem vindo ao estranho mundo do Regietheater, onde as intenções originais dos autores, a música, o libreto e as definições das personagens são ‘irrelevantes’. Michael Gielen, um influente praticante do género e antigo director da Frankfurt Opera resumiu a ideia com enorme transparência: “what Handel wanted in his operas was irrelevant; more important was what interests us… what we want.”

E o que é que ‘nos’ interessa, o que é queremos? Sexo, claro, what else? Sexo sob todas as formas, quanto mais sórdidas melhor. O pressuposto é o do costume: é preciso ‘desmascarar’, ‘desconstruir’, expor a sociedade como construção ‘hipócrita e opressora’, uma teia de relações ‘exploradoras’ porque assentes em diferenciais de poder, onde o sexo é a única pulsão ‘verdadeira’, o alfa e ómega de uma sociedade ‘imperialista’ e ‘falocrática’ (não há prémios para quem identificar os discursos filosóficos que sustentam esta ‘perspectiva’). Se esgravatarmos a superfície da narrativa com vigor suficiente, lá o descobriremos; o pudor a mascarar a volúpia, a satisfação plena da volúpia limitada apenas por convenções da ‘falsa’ moral social.

As ‘actualizações’ sofridas pelas óperas clássicas encenadas por directores que adoptam esta perspectiva são autênticas desfigurações, convertendo personagens e contextos em ultrajes unidos pela máxima vulgaridade comum. Pelos vistos, o público habituou-se às alarvidades e um Don Giovanni subjugado pelo impulso onanista –que satisfaz em palco– já se tornou ‘habitual’ (veja-se esta inenarrável produção de Calixto Bieito). Seria interessante saber o que diria Kierkegaard, de tais ‘encenações’. Um Rigoletto ‘transposto’ para o Planeta dos Macacos causou menos espanto do que as reticências da soprano alemã Diana Damrau em participar na encenação da Bavarian State Opera. Raros são os músicos que se recusam a satisfazer os delírios escatológicos dos directores artísticos, com receio que isso diminua as suas perspectivas de contratos futuros. A crítica especializada também saltou para o comboio da obscenidade desenfreada. Por exemplo, a crítica de ópera do The Guardian, Charlotte Higgins, pasmou-se perante as reacções de indignação a uma encenação de Un Ballo in Maschera, pela English National Opera:
By Higgins’s own account, it contained the usual “transvestites, masturbation, simulated sex, nudity and, in the opening scene, a row of men sitting on toilets.”

De certo modo, Higgins tem razão. A indignação é relativa: haverá motivo para tão grande espanto com o mau gosto da direcção da ópera de Verdi, quando a mesma English National Opera produziu três anos depois, em 2005, uma encenação da ópera de Wagner Götterdämmerung, onde Brünnhilde se apresenta como uma bombista suicida, que no final se faz explodir em palco, matando o restante elenco?

O argumento de que é necessária uma ‘actualização’ radical da narrativa para que as óperas clássicas permaneçam ‘apelativas’ para o público contemporâneo não é apenas uma licença para a destruição de um património cultural com objectivos políticos evidentes: é intelectualmente desonesto. Por analogia, a fábula do Capuchinho Vermelho necessitará de Hannibal Lecter no lugar do Lobo para permanecer inteligível? Precisará Pinocchio de dealers de droga em vez de uma raposa e de um gato manhoso a desviarem-no do caminho para que se perceba a parábola?

A destruição da ópera clássica tem outra consequência: impede os espectadores de exercerem qualquer esforço de mediação entre a narrativa e o contexto actual e deixa-os incapazes de compreender o tempo e as circunstâncias do autor e da obra. É um efeito terrivelmente empobrecedor –e politicamente muito conveniente: somos cada vez menos capazes de imaginar outros mundos separados de nós pelo tempo, outras formas de organização sócio-política, com valorações completamente distintas das actuais. A pobreza intelectual tende a gerar conformidade, que por sua vez valida as ‘actualizações’ empobrecedoras, num equilíbrio auto-sustentado.

Tal como noutras questões políticas e culturais fundamentais, a esperança e resistência vem do outro lado do Atlântico, sobretudo da Metropolitan Opera House, que permanece fiel à tradição interpretativa cuidada e respeitadora das obras. O director Giancarlo del Monaco, que na Europa encenou a ópera Nabucco transpondo-a para o Iraque de Saddam Hussein, resumiu com simplicidade o princípio separador que hoje segmenta os mercados de ópera europeu e americano: “I have a Eurotrash face for Europe and a classy face for the Americans.”

Noutros tempos acusou-se Cecil B. DeMille e, por continuidade, os maiores produtores de Hollywood de simplificarem, distorcerem e em última análise falsificarem a História nas suas produções, por estarem mais interessados na exibição de um luxo grandiloquente do que no rigor histórico. Havia mesmo uma quadra que resumia o desprezo do produtor pelo rigor histórico:

Cecil B. DeMille
Much against his will
Couldn’t get Moses
Into the War of the Roses.

Mas nunca ninguém se lembrou de o acusar de perverter e destruir a prática cinematográfica a que dedicou a sua vida. O mesmo não se pode dizer dos directores da Regietheater. Não só destroem as obras que encenam como, ainda por cima, o fazem com um desprezo pelo contexto histórico que supera em muito qualquer delírio da Hollywood dos anos dourados. Basta atentar no exemplo de Giancarlo del Monaco: se Cecil B. DeMille teve pruridos em enfiar Moisés na Guerra das Rosas, del Monaco não hesitou em espetar com a figura do Antigo Testamento no meio da Guerra do Iraque.

Não obstante, o princípio geral é o mesmo. Há meio século, os produtores cinematográficos serviam às plateias doses desmesuradas daquilo que as deslumbrava: o brilho falso dos cenários, a grandiosidade (não manipulada por computador) da figuração, as orquestrações balofas. Hoje, os encenadores de ópera servem aos seus públicos exactamente o que eles estão dispostos a consumir. No caso americano, recriações cuidadosas, com respeito pela música, pelo libreto e pelas personagens tal como foram criadas. No caso europeu: lixo.

Para compreender a diferença no estado de coisas entre os dois lados do Atlântico é necessário mais do que diagnosticar a doença intelectual do Regietheater, o que MacDonald faz no seu excelente ensaio. É necessário atentar nos diferentes modelos de financiamento da cultura. Quando, como sucede na Europa, a maior parte dos custos da produção cultural são suportados através de subsídios públicos, as cliques entrincheiradas nas instituições culturais ficam libertas para prosseguirem as suas agendas políticas particulares, independentemente da opinião pública. A ‘morte da ópera’ é afinal parte de uma morte maior: a morte da cultura europeia. E ambas as mortes são fiscalmente assistidas.

[Bom 2008]
publicado por Joana Alarcão às 17:15 | partilhar