O Lobo das Estepes (2)
O Lobo das Estepes foi publicado em 1927, quando Hermann Hesse tinha 50 anos de idade. A referência a Nietzsche é inelutável quando situamos o livro no espaço e tempo em que surgiu; ainda mais quando é o próprio autor, na voz do Narrador do Prefácio, a evocar o filósofo quando diz que o lobo das estepes é um “génio do sofrimento”. Apenas com o propósito de nos situar, abro aqui um parêntesis para lembrar que na terceira parte do Assim falava Zaratustra de Nietzsche, nomeadamente no episódio intitulado “O convalescente”, Zaratustra apresenta-se a ele próprio, entre um punhado de outros qualificativos, como “o advogado do sofrimento.” Fechado o parêntesis e de volta ao Prefácio, uma dezena de páginas adiante, o Narrador diz recordar-se do lobo das estepes um dia haver-lhe dito o seguinte:
[H]á épocas em que toda uma geração é apanhada entre duas idades, entre dois modos de vida, e assim perde a sua identidade, a sua moral, a sua segurança, a sua inocência. Naturalmente, nem todas as pessoas sentem isto de igual modo. Uma natureza como a de Nietzsche foi obrigada a sofrer, uma geração antes de nós, as misérias de que hoje padecemos. Milhares de homens sofrem hoje aquilo que Nietzsche teve de sofrer sozinho.
Ou seja: o lobo das estepes vive uma existência trágica; na medida em que se situa numa encruzilhada entre duas idades, ele é um estrangeiro no mundo onde habita. Para não complicar demasiado o problema, vou aqui assumir que o acontecimento a separar estas duas idades ou estes dois mundos é a “morte de Deus”, anunciada pelo louco n'A Gaia Ciência de Nietzsche.
As passagens analisadas correspondem às pp. 16 e 28 do Prefácio, Difel, 3ª ed.
Próximo post da série: Sob a sombra de Nietzsche I (A “morte de Deus” e o “super-homem”)