A esquerda um pouco che-che

A polémica sobre a capa da última Atlântico é um daqueles absurdos só possíveis na blogosfera. A coisa-se resume-se depressa: a Atlântico, como podem ver aí em baixo, fez um belo boneco que põe um bigodinho à Hitler no ícone de Che Guevara. Vai daí, a esquerda bem pensante da aldeia rasgou as vestes - que isto era relativizar o nazismo, que não se pode comparar o incomparável, que ninguém está pelo Che mas o Bush não é melhor, que a direita devia mas era olhar para os pecados da América, etc. O costume.
Um costume que me deixa sempre surpreendido com o amor da extrema-esquerda ao double talk.
Há muito que Aron diagnosticou esta esquizofrenia que permite a alguns, do alto da sua superioridade moral, condenar as "democracias burguesas" ocidentais, em particular a americana, e fechar os olhos aos mais brutais atentados à simples decência cometidos pelos comunistas. Hannah Arendt escreveu uma vasta e conhecida obra que parte do princípio, hoje bem estudado, de que tanto o nazismo como o comunismo são totalitarismos e todos os totalitarismos funcionam de modo semelhante. Courtois, Furet, Ernst Nolte mostaram-no à exaustão em calhamaços abundantemente documentados.
E, no entanto, vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, ainda há quem rasgue as vestes quando se comparam nazis e comunistas.
É fácil ver porquê.
Por um lado, a esquerda usou desde o fim da II Guerra Mundial o antifascismo para se legitimar. Todos os seus crimes se justificavam em nome do combate conta o mal absoluto do nazismo e do fascismo. Foi assim na União Soviética, na Guerra Civil de Espanha, no Leste, nas democracias do Ocidente. Já no Terceiro Mundo, na China, em Cuba, na Coreia, no Vietname, em África, na América Latina, os demónios europeus foram substituídos pelo imperialismo capitalista (leia-se USA). De qualquer modo, tornava-se necessário diabolizar o inimigo e apresentá-lo como a encarnação do mal. Ao mesmo tempo, esta diabolização relativizava as atrocidades comunistas em nome de nobres ideais. Não vou multiplicar os exemplos: basta pensar na indignação que um filme como A Queda provocou ao "humanizar" (sic) a figura de Hitler. Ou que Gunther Grass, um comunista de longa data, só perdeu o estatuto de consciência moral da Alemanha quando revelou ter pertencido às SS na juventude.
Entre nós, passou-se algo de parecido, à escala modesta dos nossos brandos costumes, com Salazar e o salazarismo. Lembram-se do escândalo dos "Grandes Portugueses"? Lembram-se de como Mário Soares e o PS tentaram colar a longa sombra da ditadura a Cavaco, desde a primeira maioria absoluta do PSD à última eleição presidencial? Lembram-se da história patusca das "ligações" do Blogue do Não à extrema-direita no referendo do aborto? A lama que a esquerda atira sobre os adversários é um banho lustral na própria pureza de intenções.
Por outro lado, o idealismo dos heróis revolucionários servia também para provar que a utopia pela qual lutavam era justa, embora fosse sistematicamente traída quando a revolução chegava ao poder. À falta de Estaline e Mao, defenestrados pelos seus sucessores, e de Lenine, Trotsky, Allende, Cunhal, Fidel e mais uma mão cheia de tiranos de província a quem a história tem retirado algum lustro, sobrava Ernesto "Che" Guevara. E era fotogénico. Uma mistuta de Robespierre, Madre Teresa e Princesa Diana.
Foi esta imagem cor-de-rosa do Che que a Atlântico, pela mão de Lucy Pepper, vandalizou com um bigode. Afinal, a iconoclastia é uma coisa feia. É duro ficar sem heróis na adolescência. Mesmo que a adolescência, de tão prolongada, esteja a tornar-se um pouco che-che.
publicado por Pedro Picoito às 11:16 | comentar | partilhar