31 de Agosto - Dia do Desperdício

Começo por pedir desculpa por não alinhar com a unânime alacridade que por aí vai, por aparecer como um desmancha-prazeres. É condenável, é verdade, que, num dia em que tanta gente bem intencionada e esforçada encontra, finalmente, motivo para um sorriso na sua triste vida, assome a feia cabeça de uma criatura sem nome, que, incapaz de tomar parte no banquete, teime em não ir embora, como diria o Erasmo. Hoje foi o dia em que 37 000 professores ficaram do lado de fora da Escola. Trinta e sete mil. É um desperdício dificilmente concebível.

Só criaturas que padeçam de imaturidade moral e de miséria mental se podem contentar com a hecatombe. São entusiasmos misólogos. Dessa numerosa e tão vocal gente não se pode, sequer, dizer que estão mentalmente apetrechados com escombros culturais - nem isso, porque mesmo esses escombros são, ainda, vestígios de qualquer coisa que passou por "cultura". Não. Essa malta orneia por desertos infra-humanos. Vive em mundos onde o sol nunca se põe - nunca viram, portanto, a noite como promessa de revelação -, nem nunca nasce - desconhecem, também, a luz, que dá a ver as coisas.

A partir de hoje, milhares e milhares de horas possíveis de contemplação reveladora de uma obra de arte, de leituras iluminantes de tantos poemas, de pasmos inesperados perante textos literários até aí ignorados e desprezados, de adestramento na plasticidade da língua, nas Wendungen de Hofmannsthal, da transfiguração do presente depois do conhecimento do passado, de cálculos agora descobertos e já não inacessíveis, de relações espaciais ainda ontem insuspeitas, de soletrações pausadas da tabela periódica que se descobrem como uma decifragem da realidade, da junção infantil das primeiras letras, que nos afasta de todas as outras espécies, tudo, tudo isso foi posto no caixote do lixo. Parabéns.

publicado por Carlos Botelho às 23:59 | comentar | partilhar