Ideologia, disse ela (1)

Estava com pouca vontade de responder a isto, porque a sombra da eminência parva do antigo regime pôs um blogue que já respeitei abaixo de qualquer réplica possível, mas a Ana Matos Pires enveredou pela velha táctica de reescrever a história apagando o pessoal da fotografia. E como ainda conto andar uns aninhos por cá, certamente para grande desgosto do cancioneiro jugular e da brigada LGBT, aqui vai o que me passou pela cabeça. Em fascículos, que o tempo não dá para mais. 
A Ana Matos Pires começa por me apontar "deslizes" no uso da terminologia científica, em concreto uma confusão entre "identidade sexual" e "identidade de género" (que não sei onde foi buscar - nunca confundi as duas coisas e a confusão é mais da Ana sobre o que eu penso do que sobre o que eu realmente penso) e o uso dos conceitos "tendências homossexuais" e "graus da homossexualidade". Numa espécie de ataque preventivo epistemológico, desafia o respeitável público a "procurar o uso destas expressões em qualquer documento cientificamente sério".
Não sei se estão ver a coisa. Se eu apresentar um artigo científico que use as palavrinhas malditas, de nada serve porque não é sério. E não é sério porquê? Porque usa as palavrinhas malditas. Em lógica, esta pescadinha de rabo na boca chama-se sofisma e, mais exactamente, petição de princípio. Mas a Ana Matos Pires faz bem em apoiar-se em sofismas porque, assim que fui à internet, descobri um artigo intitulado Opposite sex behaviours correlate with degree of homosexual feeelings in the predominatly heterosexual (N. McConaghy e D. Silove, Australia and New Zealand Journal of Pschychiatry, 1991, Mar., 25, 1, pp. 77-83), cheio de superstições arcaicas como "degree of homosexual feeling" e "predominatly heterosexual". É possível que haja mais à solta. Esta gente pouco séria dos anos 90 tem o hábito de publicar em revistas, falar na rádio, blogar em blogues e duvidar da ortodoxia.
O pior é que nem sequer as fontes da Ana Matos Pires estão isentas de pecado. Para explicar o que as pessoas sérias entendem por orientação sexual, ela deixou por cá, nas caixas de comentários, um artigo da Wikipedia, que aliás reproduz outro da sacrossanta APA (aprendam como se faz, ó conservadores). E o que diz o catecismo? "Research over several decades has demonstrated that sexual orientation ranges along a continuum, from exclusive attraction to the opposite sex to exclusive attraction to the same sex." Se é um continuum, seria lógico concluir que há graus entre os dois extremos ("from exclusive attraction to the opposite sex to exclusive attraction to the same sex"). Seria lógico - no caso de estarmos à procura destas expressões em qualquer documento cientificamente sério, claro. Mas já vimos que o forte da Ana não é a lógica. Digamos que, aqui, ela é mais ideológica.   
Existem boas razões para isso, e quer-me parecer que não são muito científicas. Os activistas LGBT não aceitam facilmente a ideia de que há graus de homossexualidade porque, para eles, a identidade sexual não é aquilo que uma pessoa faz, mas aquilo que uma pessoa é. Não se trata de descrever um comportamento, ou uma orientação, ou "tendências", mas de definir uma identidade tribal. Apesar de todos os apelos à diversidade, o seu mapa conceptual é profundamente esquemático. Há duas trincheiras identitárias: de um lado os LGBT, do outro os straight. A diferença é política. Na ideologia LGBT, o papel simbólico dos segundos define-se por reconhecerem - ou não - os direitos dos primeiros. Se alguém se situa na terra de ninguém, ou umas vezes de um lado e outras vezes do outro, ou até nos dois ao mesmo tempo, é um traidor à causa. Não se pode pertencer a duas tribos ao mesmo tempo. O que explica a recusa da Ana Matos Pires em aceitar "graus" de homossexualidade, quando a própria literatura científica, ao contrário do que ela diz, aponta para isso. E o que explica também, diga-se de passagem, que tantos homossexuais ou simpatizantes da causa se tenham sentido ofendidos quando eu referi, nos posts que originaram esta polémica, os riscos da cultura gay para as crianças. Nem lhes passou pela cabeça que essa cultura não é partilhada, ou não é partilhada da mesma maneira, por todos os homossexuais. E que, portanto, criticar os comportamentos não é criticar em bloco as pessoas. Extra ecclesiam nulla salus. Fora da tribo  não há salvação. (cont.)
publicado por Pedro Picoito às 17:35 | comentar | partilhar