Os educadores démodés

 

- um educador démodé, ontem na tvi24, no programa do Medina Carreira -

 

(crónica ontem publicada no jornal "i")

 

No debate público, em particular no da educação, os mitos tendem a sobrepor--se à realidade. Um dos mais perniciosos desses mitos é o de que a educação está hoje pior do que antigamente. Este mito, mesmo não o explicitando, visa elevar o sistema educativo durante o Estado Novo a uma espécie de Éden da exigência escolar para, comparativamente, se criticar o facilitismo do actual sistema. O que inquieta no mito não é que um certo grupo acredite nele. Inquieta que essa convicção se tenha tornado numa narrativa popular, repetida à exaustão num discurso catastrofista sobre a educação portuguesa.

 

Comecemos pelo início. Era, antigamente, o sistema educativo melhor e mais exigente? Não há um único indicador que verifique, ou sequer sugira, que a educação portuguesa estivesse melhor nesse período. Muito pelo contrário. O acesso à escolaridade era limitado, e não universal, estando geralmente reservado aos alunos cujas famílias conseguiam suportar os custos de ter os filhos a estudar. Os números são claros: em 1970, o país tinha 27 mil alunos matriculados no ensino secundário, e em 2008 tinha 350 mil (13 vezes mais). A exigência dos currículos escolares reflectia essa realidade social. Ensinar literatura a alunos que têm bibliotecas em casa não é o mesmo que ensinar a alunos que nunca viram um livro na vida – não se pode comparar o aluno médio de uma elite com o aluno médio de um país sem cair na demagogia. Que um sistema elitista na selecção de alunos fosse igualmente elitista nos conteúdos curriculares não é surpreendente, mas fica longe de ser um modelo inspirador.

 

Mais ainda, este mito desvaloriza o incrível desenvolvimento social que o nosso sistema educativo possibilitou. Os índices de escolarização real passaram de 14% para 90%, no 3.o ciclo do ensino básico, e de 4% para 70% no ensino secundário, entre 1970 e 2010. Temos hoje investigadores doutorados cujos avós eram analfabetos, e professores universitários filhos de quem mal frequentou a escola. Estes são indicadores do nosso sucesso, resultado da democratização do sistema, que de modo algum impediu que tivéssemos hoje uma elite estudantil muito melhor do que a que a precedeu.

 

Dizer isto não é negar o longo caminho que temos pela frente, nem ignorar o facilitismo e algumas outras decisões erradas que no passado prejudicaram a educação. É verdade que precisamos de mais exigência e de melhores currículos. Mas sem esquecer que a exigência não é um exclusivo do passado e que a nossa relação com o conhecimento se alterou. É que, ao contrário do que afirmam os crentes no mito, o currículo de português não ficará melhor só com mais um ou menos um clássico da literatura portuguesa. Ficará quando todo o currículo nacional for pensado com base no princípio da autonomia escolar, permitindo às escolas uma efectiva adaptação às necessidades educativas dos seus alunos. A única resposta legítima ao pluralismo é mais diversidade, e não mais centralismo.

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publicado por Alexandre Homem Cristo às 08:00 | partilhar