Tipicamente démodé (1)

 

"A proximidade do dia 10 de Junho, com toda a sua carga simbólica, sugere que se reflicta mais uma vez sobre a língua que falamos e a sua importância na evolução do todo nacional. (...)

Uma das dimensões em que o problema se coloca tem a ver com a chamada herança cultural, conjunto de elementos que permitem a um determinado grupo reconhecer-se como portador de uma identidade própria e comunicar ao longo do tempo. Essa herança cultural passa por muitos factores, e em especial pela língua, pelo património material e imaterial, pelos costumes e tradições, pela história e pela geografia... (...)

Toda a gente sabe que, actualmente, há um fosso muito acentuado entre os portugueses, sobretudo os mais jovens, e as componentes principais integradoras dessa herança.

No que à língua diz respeito, os programas escolares não têm contemplado nas últimas décadas o contacto exigente e variado com os grandes testemunhos da nossa língua ao longo da história, que são os veiculados pela literatura.

As gerações mais novas são confinadas a um pragmatismo comunicacional empobrecedor e rudimentar cujas consequências nos vão sair muito caras.

O sistema tende a incorporar o erro gramatical, legitimando-o, e a aceitar o empobrecimento lexical e sintáctico.

A língua, numa visão cara a George Steiner, é um instrumento de conhecimento e apreensão do mundo. Esse instrumento está permanentemente irisado de uma multiplicidade de valores afectivos, estéticos, sociais, culturais, etc., sedimentados pela memória e pela história colectivas, pelo uso transgeracional, pelos autores, pelas características dos lugares onde é falada, por muitos outros factores.

Disso não se pode fazer tábua rasa. (...)

Uma língua transporta grande parte de uma visão do mundo e de uma cultura. É pela boa aprendizagem de uma língua que se torna possível a formulação eficaz do pensamento abstracto nas suas implicações filosóficas, matemáticas, científicas. E é por aí que se chega ao conhecimento e ao progresso.

Por isso é imperativo que seja reabilitada a relação dos portugueses com a língua que falam e com a cultura que se exprime através dela. (...)

A cultura portuguesa não pode deixar de ser parte dessa realidade em que se inscreve, de uma herança cultural europeia, entendida na diversidade das suas expressões e na conjugação das suas matrizes principais, como, entre outras, a antiguidade grega e latina e a judeo-cristã, o desvendamento do mundo e a aventura epistemológica do séc. XVI, o século das Luzes, o Romantismo, o Realismo, os Modernismos, tudo o que configurou a Europa ao longo do tempo e alastrou, a partir dela, para outras zonas do mundo.

Tratando-se da cultura portuguesa, temos de ser nós, portugueses, os primeiros a zelar por esse estatuto e o processo correspondente passa por uma grande atenção ao que vai acontecendo no plano da escola, da família e das instituições que se preocupam com a formação e a aprendizagem dos jovens e com os valores insubstituíveis da cultura."

 

Diário de Notícias, 30 de Maio de 2012.

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publicado por Carlos Botelho às 21:30 | partilhar