hcl a 27 de Junho de 2012 às 14:45
Este post parte de um pressuposto básico:
- Não existe propriedade privada.
Retira ao indivíduo o direito de dispor dos seus bens. Assume que o Estado tem o direito, arbitrário, de dispor dos bens de todos.
Fica apenas a dúvida sobre o critério e quantidade de bens a retirar (aqui o autor apela à bonomia do Estado).
Não há lei (fazem-se novas se for preciso, a granel), não há nada. Só se ouve o "reivindicante" (ouve ou usa).
Não tem nada a ver com “caridosos e humanos” que pressupõe uma dose de voluntarismo que, nos impostos, simplesmente não existe.
“Paga ou vais preso” não tem nada de “caridosos e humanos”.
Renato a 27 de Junho de 2012 às 15:56
hcl, só uma nota, que parece haver uma certa confusão: Por um lado, o direito absoluto de propriedade (o jus utendi, fruendi e abutendi dos jurisconcultos romanos) já não existe há muito e ainda bem (poderia dar aqui imensos exemplos, que nos deveriam entrar pelos olhos dentro) e por outro lado, impostos é coisa que sempre houve desde que se descobriu que a caridade e o voluntarismo não funciona. Já ultrapassámos essa fase da civilização há muito. O resto é uma questão de como, de grau, taxas, incidências, etc, que se pode, e deve, discutir.
desde que se descobriu que a caridade e o voluntarismo não funciona. Já ultrapassámos essa fase da civilização há muito."
Que o direito de propriedade privada tem de ser bem entendido, ainda vá.
Agora imaginar esse salto civilizacional em que uma caridade que não funciona de repente se cura e passa a funcionar quando o Estado cobra impostos e decide em vez dos voluntaristas... não sei se consigo.
Renato a 27 de Junho de 2012 às 17:44
Qual “caridade”? Não admira que não entenda, Pedro. Eu não disse que a caridade passava a funcionar melhor. Não é caridade nem voluntarismo, é mesmo imposto, que é quando o estado nos vai ao bolso. Salto civilizacional deu-se quando o Pedro deixou de ter de ir pedir ao vizinho da caverna ao lado para o deixar passar pelo terreno dele para ir caçar bisontes para não morrer à fome. Tenho a certeza que percebe isso. A Ayn Rand passou parte da vida a dizer que só devia dar a quem ela queria, e outra parte a viver à custa da segurança social, isto é, daquilo que o estado tirava aos vizinhos à força para lhe dar a ela.
Impostos, ok.
Algum papel "social" do Estado, ok.
Agora desclassificar a caridade como coisa ultrapassada, não. Um dia destes combinamos e damos uma voltinha por umas quantas instituições. E não é porque o Estado ainda não chegou lá: é bom que não chegue, que deixe fazer e apoie, se as iniciativas o merecerem.
Renato a 27 de Junho de 2012 às 23:47
Pedro, eu sou todo pela caridade. Já dei coisas para a caridade. Mas fazemos assim, o Pedro leva-me a essas tantas instituições de caridade e eu levo-o a casas de famílias que vivem da caridade e acompanhamos o seu dia a dia e a diferença entre viver e sobreviver, que é imensa. Quando falo de civilização, é disso que falo. Infelizmente, damos o que temos como garantido e nem sabemos de onde vem.
O curioso é que temos uma caridade que precisa de apoio do Estado. Todos os dias as instituições batem à porta do Estado e só fazem bem porque o Estado, precisamente, serve para isso. Isso também é Estado Social. Não é o Estado que chega lá, as instituições é que se chegam ao Estado. As IPSS dependem do Estado para sobreviver, e quem diz Estado, diz impostos. Não são exactamente locais ao ar livre onde as pessoas vão depositar comida e roupa e onde outras pessoas as vão recolher. Há uma estrutura, funcionários, assessorias técnicas de vária espécie, transportes, gasolina, etc, etc e tudo isso custa muito dinheiro. Também sei um bocadinho disso, não desfazendo.
Já fizemos a experiência de depender da caridade e não acho que tenha dado grande resultado. Esperámos, esperámos, e continuávamos miseráveis, analfabetos e a morrer que nem tordos. O Estado tinha a função que os neo liberais acham que o Estado deve ter: a segurança e a justiça. Ironicamente, com gente pobre, analfabeta e de pouca saúde, nem segurança nem justiça. Não é irónico? Finda essa experiência, lá apareceu o Estado a a assumir a função de tirar a uns para dar a outros. Coisa que faz impressão a muitos portugueses sem qualquer memória histórica ou respeito pelos seus antepassados ou por si mesmos, já agora. É o Estado Social que permite que tenhamos agora uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil do mundo, para não falar de outras tantas coisas. Não é "algum papel social do Estado". É muito papel social. Como eu dizia, parece que damos isso como garantido, como o ar que respiramos. Vamos a ver.
Você chama caridade às IPSS e ao dar de comer a pobres, eu chamo caridade a qualquer amor desinteressado entre as pessoas, que sustenta coisas como a existência das famílias, os actos de amizade, além da larga maioria das IPSS e restante apoio aos pobres que existe ainda hoje (e 100% da que existe em tempos ou lugares sem Estado social). É uma questão de terminologia, mas isto não foi ultrapassado nem nunca será.
Acredito na caridade porque a posso fazer eu, hoje e agora. O estado social pode ser muito bom e muito útil sempre que não seja uma mega-construção idealizada mas falida.
Também questiono muito a sua leitura da história. Parece que temos de comparar a caridade de séculos antigos com o Estado social de hoje. Mas pelo meio houve uma quantidade não-despicienda de desenvolvimento científico, político, social, industrial, etc.
Eu leio a história assim: a caridade antes fazia muito, e agora pode fazer muito mais. O Estado social antes fazia zero, agora começa a fazer um pouco. Depois entra em falência e estraga a vida a toda a gente durante muitos anos. Depois recomeça...
Renato a 28 de Junho de 2012 às 11:30
Sim, Pedro, devemos ser bons uns para os outros e tal e o amor e a amizade, etc. Mas sinceramente, você não tem vontade nenhuma de viver em “tempos e lugares sem Estado social” e depender do amor dos outros. Se lhe falta memória histórica sobre o nosso país, pode viver em direto essa experiência atualmente em certos lugares. A questão resume-se a isso. Eu estava-lhe a dizer que as IPSS não sobrevivem sem o Estado e sei do que falo, e o estado social não se resume, nem de perto nem de longe, ao apoio que dá às IPSS. Educação, saúde, pensões, etc. Não é a amizade e o amor dos outros que me permite tratar da saúde da minha família e educar o meu filho. É por isso mesmo que quando o Estado entra em falência, não há amizade e amor que valham. Isto é politica social, politica pura, opções de governação, não é evolução da ciência e indústria. Se com referência à indústria está a falar em dinheiro que o estado pode cobrar para redistribuir, convém notar que em outros tempos e lugares sempre houve quem tivesse muito e quem tivesse muito pouco . Do mesmo modo, a ciência pode estar ao dispor de poucos ou de muitos. O estado social não brota espontaneamente, é preciso que alguém o semeie e faça aparecer.
Sim, as IPSS sobrevivem sem o Estado, como se vê se lhes chamar Misericórdias, paróquias e não IPSS.
O que temos agora são muitas IPSS viciadas no subsídio do Estado, e que por esse motivo terão muita dificuldade em passar sem esse apoio. Outras virão.
E não esqueçamos aquela ajuda maravilhosa que o estado dá sobre-regulando tudo, de forma a que só pode haver lares de idosos de luxo, com todas as condições, com o pessoal super-formado, mesmo que isso faça subir os custos de entrada e deixe muitos idosos na rua ou abandonados.
Também sei do que falo, estou envolvido pessoal e profissionalmente com umas 15 instituições variadas, poucas delas têm o estatuto "IPSS" e todas fazem muito bem a muita gente.
Mas chega desta conversa: você aposte no papel social do Estado e trabalhe por isso, eu aposto nos esforços privados. Com isso, remamos os dois no mesmo sentido, e amigo não empata amigo...
Renato a 28 de Junho de 2012 às 13:37
A assistência social das paróquias e misericórdias sobrevive sem apoio do Estado? Muito me conta. O Pedro deve achar que nasci ontem e não sei nada. Adiante. E bons, bons, eram os asilos de antigamente e a mitra de Lisboa, sem essas chatices das exigências modernaças e onde os velhos não pagavam nada, porque simplesmente não tinham nada, e que por isso mesmo não tinham o direito de exigir o mínimo de dignidade. Vamos em frente. O Pedro está então satisfeito com esforços privados e dispensa o estado lá nas suas instituições, não é? Que se mantenha como quer, e que nunca caia no "vício dos subsídios", é o que eu desejo e amigos na mesma.
Tiro ao Alvo a 28 de Junho de 2012 às 21:55
Renato, você está a exagerar. Acredite que há muitas instituições, algumas sem estatuto de IPSS, que ajudam muita gente e não recebem nada do Estado. E também não me parece que o Estado, neste particular, deva fazer tudo. Parece-me, aliás, que não pode fazer tudo.
E, acredite, há muita gente no Estado a exigir das IPSS condições que inviabilizam o apoio a muita gente carenciada, apenas por que entende que os lares de idosos devem ser casas com conforto, logo com elevados custos de funcionamento, enquanto deixam na maior miséria muita gente que, muito justamente, não quer sair da sua casa e aí vive e aí morre na maior solidão. Tudo isto para nossa vergonha.
Renato a 29 de Junho de 2012 às 00:47
Tiro ao Alvo, começando pelas condições exigidas, eu nunca disse que não há exageros. A questão nunca foi essa. A questão é que de facto, sem exageros ou sem eles, os pobres seriam muito mais pobres e desprotegidos sem o Estado. É um questão de grau e eu dou muita importância a isso, porque passando-se de grau há um salto de civilização. Porque eu tenho idade suficiente para ter conhecido na minha cidade um asilo de velhos onde literalmente se passava fome e frio, com velhos andrajosos sentados em bancos de pedra o dia todo. Esse era o tempo em que a assistência estava quase totalmente entregue à caridade, aos privados benfeitores. Portanto, quando me falam nos exageros de regulamentação que existem hoje, o tamanho dos quartos, lares como hóteis, eu, sinceramente, sinto-me estupidamente feliz. Feliz por haver quem exagere na sua proteção. Percebe isto, ou não? De resto, corrijam os erros que certamente há. Eu vi nascer nestes últimos trinta anos muitos centros de dia, muitos lares, muitos centros de convívio, onde estão milhares de idosos, vi nascer um centro de dia na aldeia dos meus pais, foi o meu pai um dos que o fez nascer. Uma parte com donativos de privados, e o grosso com apoio do estado, e assim se mantém em funcionamento. Quando o Estado deixar de dar, acaba. Diz-me que há muitos idosos na maior solidão. Há sim senhor, e isso revolta-me. Mas porque diz que o Estado os deixa na maior miséria? Estamos então, afinal à espera que seja o Estado a ajudar-nos no final da vida, não confiando que as boas almas privadas nos dêem a mão, sem qualquer subsidio do Estado? Eu sei que muitas IPSS os apoiam e outras que não IPSS. Mas também sei que a maior parte desse esforço é feito sobretudo pelas autarquias, na maior parte do país. Mesmo em Lisboa, várias juntas de freguesia já o fazem. Isto para não falar nas crianças. Sabe como eram antigamente os orfanatos? Os depósitos de crianças abandonadas? Acha que agora há falhas na protecção das crianças? Que não há proteção suficiente, ou, por outro lado, que há excesso de comodidades?
Nunca pus em causa a boa vontade ou o esforço de muitas instituições privadas. Mas que me digam que as misericórdias e paroquias sobrevivem sem o apoio do Estado, como fez o Pedro, é fantástico, porque simplesmente é não saber do que se fala. Muitas paróquias por esse país fora formam IPSS, e é assim que ajudam crianças e idosos, com subsídios do Estado. Vocês que devem ser de Lisboa, faz favor façam uma visita ao centro social paroquial de São Domingos de Rana, uma IPSS com apoio do Estado, um exemplo que eu conheço ai perto, porque passo férias aí ao lado. e outras que não formam IPSS batem todos os dias à porta das autarquias para as suas obras de assistência. Da mesma forma, as misericórdias, quando investem é com apoio do Estado, porque simplesmente uns e outros geralmente não têm receitas próprias suficientes. Para além de verbas de segurança social, muito dinheiro do QREN foi investido em infra-estruturas dessas instituições.
Mas que me digam que as misericórdias e paroquias sobrevivem sem o apoio do Estado, como fez o Pedro, é fantástico, porque simplesmente é não saber do que se fala.
A assistência social das igrejas locais anda aí pelo menos há 2000 anos, já co-existiu com todo o tipo de estados e regimes em todo o tipo de latitudes e para todo o tipo de serviços. As misericórdias idem, desde há séculos.
Hoje, em sítios onde não há estado, ou onde o estado não tem capacidade de intervenção social, lá estão as paróquias e as misericórdias. Veja-se África.
Descreve a relação entre o Estado e estas instituições como de dependência TOTAL, e depois sou eu que não tem visão histórica.
Eu SEI que em Portugal as misericórdias têm fortes ligações com os subsídios do estado. Nem podia ser de outra maneira num país onde o Estado suga mais de metade de tudo o que se produz, e tenta fornecer todos os serviços que devia simplesmente garantir. O que digo é que isso pode mudar amanhã e não deixará de existir esse trabalho, apenas mudará de dimensão e características.
Investigue números sobre o 3º sector em Portugal, terá um vislumbre do muito que se faz sem o Estado, e nalguns casos, apesar do Estado.
O apoio social vai buscar fundos à sociedade civil, organiza-se e distribui-os. O Estado português não dá outra hipótese senão contar com ele neste processo. Se o Estado se reduzisse para metade amanhã, as paróquias e as misericórdias, que já captam MUITO financiamento e voluntariado privado, captariam mais. Simples.
Tal como disse o "Tiro ao Alvo" você perde razão pelo exagero das suas afirmações. Não é que não tenha alguma razão, não é que não conheça o tema, é só que exagera.
Renato a 29 de Junho de 2012 às 11:48
Pedro, disse que as misericórdias e paróquias sobrevivem sem o apoio do Estado. Isso revela que desconhece o meio. Outra coisa é dizer-me que DEVERIAM viver sem apoio do Estado. Afinal, queria falar-me do antigamente, não de agora? Decida-se. Sobre o antigamente podemos falar, conheço eu também muito bem como era antigamente, quando o Estado estava reduzido a metade ou um terço no apoio social, havendo épocas em que estava reduzido a nada. Já em cima dei-lhe um exemplo e isso era praticamente só nos meios urbanos. Na província o apoio social era praticamente inexistente. Asilos e creches eram raros e os que havia eram na maior parte miseráveis e os cuidados de saúde para toda a população, sobretudo idosos e crianças eram rudimentares, daí que houvesse tanta gente que não chegava a velho. E não se diga que não sabia dar mais dignidade às pessoas, porque lá fora já havia bons exemplos. Puro desleixo. Parece que cairam em saco roto os exemplos que eu dei. Quem me dera ter uma máquina do tempo, porque, pelos vistos, o meu testemunho não serve.
Diz que se o Estado se reduzisse a metade, a sociadede civil se organizaria e resolveria a situação. Ora, como eu digo, só não conhecendo mesmo a nossa história e a história em geral dos povos. Eu espero, para seu bem e de todos nós que o Estado não se afaste nunca desta tarefa e não a deixe para a sociedade civil. Se isso vier a acontecer, falaremos aqui então, Pedro.
Tiro ao Alvo a 29 de Junho de 2012 às 16:01
Corrigindo:
Renato, aceite o meu conselho, modere as suas críticas e não tenha tantas certezas sobre este assunto. O Rodrigues mostra saber do que fala.
Eu também conheci o asilo da minha terra, que era uma coisa miserável, tenebrosa, que durou tempo demais e que só tardiamente, por iniciativa de um grupo de civis, se modernizou.
Eu também ajudei a construir e a pôr em funcionamento, na minha terra, uma creche, um centro de dia e um lar de internamento para idosos e entendo, portanto com conhecimento de cauda, que o Estado não se devendo pôr de fora, atrapalha por vezes, e muito. Até as Câmaras Municipais, nem sempre ajudam.
Quando falo nas Câmaras não falo só dos políticos mas também das suas máquinas administrativas, por vezes difíceis de "dominar".
Pensar que deve ser só o Estado a prover todas as nossas necessidades nesta área é erro, como é erro pensar que o progresso que houve nesta matéria se deveu à intervenção esclarecida do Estado. O progresso verificou-se em todas as áreas, e esta não podia ficar de fora. Neste capítulo, parece-me que se exagerou criticando aquilo a que se chamava caridade, que passou a ser caridadezinha, e enveredamos por caminhos esconsos.
A este propósito lembre-se que foi o Estado, por falta de pagamento de um imposto, que alienou o apartamento daquela idosa que estava lá dentro morta há anos, não obstante as muitas evidências de que qualquer coisa de muito grave se havia passado com a senhora. Isto sem que um único funcionário público tenha tentado visitar o prédio. Do fisco ou de outro lado qualquer.
Concluindo, parece-me que, sobretudo, devemos lutar por melhor Estado e não por maior Estado.
Renato a 29 de Junho de 2012 às 17:37
Tiro ao Alvo, portanto, o Estado não teve nada a ver com o progresso que houve, seja na assistência aos idosos, seja às crianças, saúde, etc, seja aos pobres em geral. Nada. É o “progresso”, uma coisa abstrata. Foi a ciência, uma equação química, uma lei da física. Não tira sequer ilação nenhuma da existência desse asilo que falou, do tempo em que o estado social não existia. Suponho que ajudou depois a reconstruir esse asilo exclusivamente com meios privados. É meritório, muito bem. Mas eu acho que é uma exceção. No resto, a grande maioria das creches e centros de dia que apareceram, ou foram diretamente construídas pela Estado, ou foram por si financiadas massivamente, já para não falar em todas as estruturas de saúde. Faço aqui o mesmo desafio que fiz ao Pedro: quando o Estado deixar de se meter, falamos. Não posso fazer outra coisa.
Enquanto você passa férias perto do centro paroquial de S. Domingos de Rana, eu faço cursos de gestão de organizações sociais que me põem em contacto com gestores de 30 associações, IPSS, etc. durante 12 semanas. Por acaso quando fui, havia lá gente de S. Domingos de Rana. Na próxima segunda feira vou dar uma sessão sobre Fundraising a pessoas de mais duas instituições (não vou falar lá de obtenção de fundos do Estado, para estes não há hipótese).
Outras vezes poderá encontrar-me a mudar fraldas a deficientes, que isto de preocupação social convém não ser só trabalho de secretaria.
Ora bem, pus-me a pensar porque é que esta conversa vai tão longa e não nos entendemos. Devia ser simples: há alguma sobreposição da actividade social dos privados e do estado. Nenhum deles faz 100% do trabalho, nenhum dos dois faz 0%.
Penso que as nossas dificuldades de compreensão mútua estão a três níveis:
1. Postura de esquerda, postura de direita: você confia mais no estado, eu nos privados. Isto já sabíamos, e não vamos mudar hoje. Ok.
2. Identidade das iniciativas da Igreja. Penso que você não compreende, do mesmo modo que eu, como se vêem a si próprias instituições com séculos de existência, movidas por caridade, movida por vida de fé. Sabem que cooperam com o Estado, até podem saber que o estado lhes dá a maior parte dos seus fundos... mas não se sentem filhas do estado, até porque estavam lá antes, na acção social. Estão em terreno próprio, têm energias próprias, e revitalizam-se conforme necessário com ou sem o estado, com mais ou menos estado. Também não vêm o envolvimento do estado como um elemento de progresso na acção social, é apenas a forma actual em Portugal de fazer as coisas. E por vezes pesa mais do que ajuda.
3. A leitura da história. Você deve ter aprendido história naquela versão em que os medievais são obscurantistas, o progresso é contínuo e sempre em crescendo, a ciência é património da esquerda, a fé e a caridade são coisas que se ultrapassam com o desenvolvimento, etc. Ora a descrição que você faz do trabalho social no passado é uma tristeza, uma tristeza! Como se fosse mau trabalho social no séc. XIII não dispôr de vacinas ou antibióticos! As misericórdias não são produtoras de higiene, saúde, educação e bem estar para toda uma sociedade. São incrementadoras de todas essas coisas, nas condições próprias de cada tempo! As creches, os sanatórios, os asilos, os orfanatos que você vê com olhos dickensianos eram, em geral, EXCELENTES, porque a alternativa era a mesma miséria mas sem ninguém por perto, sem um tecto, sem alimento. Entrava lá o Sol e havia lá sorrisos, e muitos morriam lá mais felizes com uma freira a segurar-lhes a mão do que morrem hoje nos lares de luxo com assistentes sociais e analgésicos. Não era tudo como aqueles filmes escuros em que se tenta assustar com a miséria de tudo o que era medieval.
E, por favor, distinga o progresso do últimos século da evolução do Estado. Está bem que o Estado também fez muita coisa boa. Nós aqui só estamos a dizer que há mais coisas boas a acontecer, e que a mesma ciência que ajudou a acção do estado também ajuda a acção dos privados.
Cumprimentos.
Renato a 1 de Julho de 2012 às 22:55
Ó Pedro, sinceramente. Olhe, eu cresci na baixinha de Coimbra, foi praticamente menino de rua, conheci a miséria extrema daqueles dias e conheci bem os dois asilos que por lá havia, onde depositavam os miseráveis e abandonados. Mas qual sol e quais sorrisos? Mas você pensa que aquilo era o Música no Coração? Tinham um tecto, mais nada. Isso basta-lhe? A alimentação era má, as condições de higiene eram más, era frio, humido, e o ambiente era humanamente gelado. Uma freira a segurar-lhes a mão? Está a brincar? Eu visitava frequentemente uma velhinha nossa vizinha que lá estava e aquilo era tenebroso. Não tem nada a ver com a actualidade, homem. Que diabo, mas então você tem formação nessa área a até tem essa acção meritória que diz, e não conhece a história da nossa assistência social? Mas você não sabe que isso, que era péssimo, só havia praticamente nas cidades e que na provincia não havia assistência social praticamente nenhuma? Que a Igreja tinha uma acção extremamente limitada, limitando-se a sua acção praticamente à parte espiritual? Na aldeia dos meus pais, grande parte da população trabalhava nas vinhas do arcipreste quase por um naco de pão, enquanto a minha avó, pequenina, apanhava bosta dos caminhos para vender. E você não sabe como eram os orfanatos? Como tratavam as crianças? Mas então, que sabe você, afinal? Muito mais sei eu, que tenho idade para isso e vivi de perto essa realidade e conheço a vida da minha gente. Então, mas é preciso "ciência" para dar conforto aos pobres? E diz que o estado "também" fez muita coisa boa? "Também"? Se não fosse o Estado começar a preocupar-se, isto continuava uma miséria e o Pedro diz "também"? Não tenho grande vontade de prolongar esta discussão e fico-me por aqui, tenha paciência.