Um mundo de super-homens

 

Em 1999, Tiger Woods, famoso golfista norte-americano, foi operado aos olhos. Não se tratou de uma cirurgia correctiva, mas de uma que melhorou a sua visão acima do que é humanamente natural. Ou seja, não foi um acto terapêutico; foi para além da terapia. Os efeitos dessa cirurgia revelaram-se rapidamente. Após uma longa maré de derrotas, Woods regressou às vitórias, vencendo consecutivamente os torneios que se seguiram à cirurgia.

 

Este caso é interessante por dois motivos. Em primeiro, porque levanta uma certa ambiguidade quanto à verdade desportiva: se altera as aptidões de um atleta, não estabelece uma desigualdade na competição? Em segundo, porque expõe com clareza os desafios que este tipo de progresso científico colocará à sociedade. Foquemos a nossa atenção no último.

 

A ciência sempre esteve ligada ao desporto. Legitimamente (treinos, medicação, equipamentos) e ilegitimamente (doping). Mas agora, numa espécie de área cinzenta, a relação surgiu sob forma de modificações permanentes nas aptidões dos atletas. O desporto é um meio competitivo por natureza, e por isso expõe bem o problema. Tiger Woods melhorou a sua visão, ganhou uma vantagem sobre os adversários, venceu mais troféus, e assim pressionou outros atletas a fazer a mesma cirurgia, para não ficarem derrotados à partida. Basta transpormos este caso para o nosso quotidiano para percebermos a tentação. Quem, na sua actividade, não gostaria de adquirir uma característica única, que lhe atribuísse uma vantagem sobre os restantes?

 

De facto, muito em breve, o leque de possibilidades de melhorias será imenso. É sabido que estamos cada vez mais próximos de, através de modificações ao código genético dos embriões, prevenir e apagar doenças. Mas é esquecido que estamos igualmente próximos de, para além da terapia, poder escolher a cor dos olhos dos nossos filhos, modificar a sua altura, a sua massa muscular, a sua inteligência ou a sua memória. E se as vantagens parecem evidentes, os riscos não devem ser esquecidos. Desde logo, quem não se submeter às cirurgias/ modificações, ficará para trás. Depois, o risco da uniformização, porque a busca do êxito levará a seguir os estereótipos sociais de sucesso. E, finalmente, a desigualdade no acesso à tecnologia (devido ao seu elevado custo financeiro) poderá acentuar a desigualdade social – os mais ricos acedem a “melhoramentos” mais eficazes e tiram vantagens maiores do que os menos ricos.

 

Parece-lhe ficção científica? Já não o é. Se, na ficção, o sonho da perfeição humana está bem vivo no “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley ou, para os mais cinéfilos, no recente filme “Limitless” (2011) de Neil Burger, há já um número crescente de pensadores prestigiados, como Fukuyama e Habermas, a dedicarem-se ao tema. É facto que os homens se adaptam com facilidade às descobertas da ciência, pois estão décadas à sua frente. Mas é também facto que, por vezes, as vantagens nos fazem perder de vista os perigos. No imaginário das duas obras referidas, como na investigação, os avisos foram feitos. Resta saber se alguém os ouviu.

 

[publicado no i]

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publicado por Alexandre Homem Cristo às 19:30 | partilhar