A resposta haveria de passar por saber se o conceito divino de mal se assemelha totalmente ao nosso...
Caro Gonçalo,
aprendi esta há pouco tempo, portanto cá vai:
Na famosa "tríade inconsistente":
a) Deus é omnipotente
b) Deus é absolutamente bom
c)Existe o mal
esconde-se uma "premissa de ligação" que não está justificada, a saber:
d)Se existir um ser que é absolutamente bom e todo-poderoso, não haverá qualquer mal.
Ou seja, pode-se conceber a existência de um ser absolutamente bom e todo-poderoso que tenha uma razão suficiente para permitir o mal.
Contudo, isto explica apenas a possibilidade de consistência entre a) b) e c). Não explica o sentido, finalidade ou a tal razão suficiente da existência do mal.
Sempre se pode dizer que não há razão suficiente que desculpe Deus e a sua permissão do mal.
Anónimo a 30 de Agosto de 2007 às 20:48
Bem sei que não satisfaz plenamente e, sobretudo, não consola suficientemente a quem vive o "mal" que é sempre a morte ou o sofrimento.
Mas as questões teóricas merecem ser pensadas e levadas a sério, mesmo que sejam só isso mesmo.
Para mim, ajudou-me perceber nos clássicos que o mal é a ausência do bem devido (uma pedra não ter braços não é mal; já um homem sem uma perna é um mal terrível).
O mal enquanto graduação de bem muda tudo.
Um químico dirá que uma droga tem um vitalidade extraordinária: não é um mal. E quem provou diz que a Cocaína é muito boa! Um vulcão é extraordinário e diz-nos que há vida no planeta.
O mal surge, pois, por referência ao bem devido. E aquilo a que chamamos "mal" é um desencontro de "bens".
Ao percebermos que o bem em absoluto não existe na nossa experiência de seres (o mais próximo que lhe conheço é a paixão e o amor quando nos faz estar "totalmente" presentes ao outro e simultaneamente a nós próprios), percebemos que o "mal" é afinal a nossa condição de seres finitos, relativos. De outro modo não haveria liberdade, não poderíamos escolher, pois o bem impunha-se a nós próprio (não é isso que sucede com o vício?).
Digo isto, porque ajuda a perceber, mas sei que não consola nem compreende (fecha) nada. Deixará na mesma muitos insatisfeitos. Claro que sim. E é bom que deixe. É sinal que o "mal" não é a nossa casa.
Porque na verdade, a percepção do mal enquanto ausência do bem devido apenas abre portas, não fecha. Levanta questões, não responde. Mas aponta-nos o nosso caminho de humanidade. É isso que somos também: mistério.
Abs,
F
Caro Hugo,
Sem concordar plenamente, acompanho com mais facilidade o comentário de "F".
Já não é primeira vez que a problemática da existência do mal aterra aqui no Cachimbo...
Sugiro um jantar, um dia destes, de preferência em véspera de dia inútil, para permitir que o tempo nos leve até onde o espaço dos comentários não permite.
Talvez no dia em que o P. Picoito oferecer o tal jantar no Gambrinus...
Caro F,
Concordo na generalidade. Mas...
...a noção de gradação e perspectiva perde-se quando nos deparamos com o escândalo: uma mãe agarrada aos filhos e todos carbonizados é inconjugável.
Mas acho que concorda comigo (e eu consigo). As suas linhas finais sobre o mistério parecem indicá-lo.
A questão do livre arbítrio é mais complexa do que parece. É que Deus poderia ter-nos criado de forma a que escolhêssemos sempre livremente o bem.
Caro Gonçalo,
Vamos a isso. Já tarda.
Abraços
Filipe Anacoreta a 31 de Agosto de 2007 às 10:44
Caros Gonçalo e Hugo,
Também quero estar no jantar!
Quanto a essa estrondosa possibilidade de criar de forma a que o ser criado escolha sempre livremente o bem, Hugo, força! Atira-te a isso! A Humanidade aguarda ansiosa...
:)
abs,
Filipe, agora já não paro.
Só descobri esta possibilidade este Verão. Está n'A Cidade de Deus de Sto. Agostinho, Livro XXII, 30.
É concebível "um mundo" em que o livre arbítrio que se determina sempre por não pecar.
Se é concebível, então por que é que não é o nosso?
Penso que anda para aí um comentador que diz algo de parecido: a liberdade (neste sentido) é conjugável com uma única via de acção.
Abs.
Hugo,
O Ricoeur escreveu bastante sobre este tema. Destaco dois livros: "symbolism of evil" e "evil: a lesson to philosophy and theology". Ele rejeita qualquer possibilidade de teodiceia em que o mal de alguma maneira é justificado ou aceite. Por isso ele critica Agostinho por condenar a existência temporal (e com ela toda a humanidade) a um estado de perversão absoluta; também critica Leibnitz por não permitir escutar a voz do "justo sofredor"."Aceitar" ou "resignar-se" são o "point zero of spirituality".
Cumprimentos
João,
o ponto é precisamente esse.
Cumprimentos.
tiago mendes a 31 de Agosto de 2007 às 22:08
Caro Hugo,
Interessante e inesgotável tema. Deixo dois comentários breves, que são, no contexto, comentários de um leigo nestas matérias.
1. "A questão do livre arbítrio é mais complexa do que parece. É que Deus poderia ter-nos criado de forma a que escolhêssemos sempre livremente o bem."
Tomando como premissas, para facilitar o diálogo num ponto em particular, (1) a criação divina e (2) a "revelação" do Bem/Mal aos homens, será concebível a possibilidade de um livre arbítrio que resulta sempre na escolha pelo bem?
A resposta imediata é "sim". Deus é omnipotente, portanto, basta-lhe "calibrar" a sua Criação de modo a que isso aconteça. Mas será que podemos atribuir um sentido ético-moral a um acontecimento "impossível", materialmente "inconcebível"? Se efectivamente não há escolha, como é possível falar de bem e de mal? Dir-me-á o Hugo que a escolha existiria, mas que ela recairia sempre no Bem. Mas como podemos conceber que o homem "use" a expressão-concepção de Mal se nunca o viu, se nunca o conheceu, se nunca o "reconheceu"? Qualificar (e sem linguagem não podemos falar de conceitos morais ou, for that matter, de quaisquer outros) algo de inobservável, ainda que imaginável (por exemplo, se a morte de animais fosse moralmente aceite, poder-se-ia imaginar a morte de humanos através dos mesmos utensílios, mesmo que ela nunca fosse concretizada), parece um pouco estranho, mais ainda quando estmaos no domínio da moral. Imaginemos que alguém, invocando o arco-íris e as suas sete cores, afirmava que o uso da oitava cor era imoral. Alguém daria credibilidade a esta afirmação? Dito de outro modo (e assumindo que seria possível essa afirmação vir de um deus omnipotente), alguém reconheceria valor a uma afirmação que recorre a sinais/significados que têm (ou teriam, ou deveriam ter, proponho eu) interpretações/valorações diversas?
Ou seja: não tenho dificuldade em imaginar a possibilidade "teórica" que o Hugo propõe. Mas quando a essa possibilidade juntamos algumas características essencias da vivência numa realidade imaginável, não há qualquer coisa de insolúvel no problema?
2. "...a noção de gradação e perspectiva perde-se quando nos deparamos com o escândalo: uma mãe agarrada aos filhos e todos carbonizados é inconjugável."
Percebo o uso da palavra "escândalo", mas há aqui algo de essencial que me parece esquecido ou pouco valorizado: não há espaço para interpretar o resultado observado no plano moral que o comentário que o Hugo faz sugere. Houve uma escolha ponderada pela mãe que, face a circunstâncias alheias, resultou numa tragédia. O ponto essencial é que há uma decisão tomada num contexto de incerteza, onde intervém factores externos, que o decisor não controla. Acidentes existirão sempre, ou não? Uma pessoa pode tropeçar e partir um pé, pode engolir uns pirolitos acidentalmente e depois acabar por se afogar no mar, pode passar por debaixo de uma ponte quando ela desaba, sendo que tudo isto tem resultados "maus". Mas será que isso é um bom contraexemplo para a hipótese de um deus omnipotente e preocupado com o bem e cujas criaturas escolhem sempre pelo melhor? Julgo que não. A não ser que o mundo fosse um jogo de computador, que não houvesse morte nem vida, nem correntes de um rio, nem raios de sol... a existência é, por definição, também uma experiência de riscos físicos. Mesmo que excluamos a possibilidade de uma escolha "imoral" por parte dos homens, não é impossível que observamos resultados que nos pareçam "moralmente chocantes".
Cumprimentos,