Thomas Beckett foi chanceler de Inglaterra entre 1155 e 1162. No exercício do cargo, mostrou-se sempre de uma fidelidade inquebrantável a Henrique II, mesmo contra o próprio clero de que fazia parte. Quando vagou o arcebispado de Cantuária, o mais alto posto na hierarquia eclesiástica do reino, o soberano propôs a nomeação de
Beckett, esperando que o antigo chanceler dominasse por ele o resto do episcopado. Era um tempo de acesas disputas políticas em torno da independência da Igreja, que a coroa queria submeter.
Beckett resistiu, dizendo ao rei que, se fosse bispo, teria que obedecer a Roma, mas Henrique II não acreditou. E assim o novo primaz
foi nomeado e passou a ser o maior adversário do homem que antes servira. Reza a lenda que o Plantageneta terá gritado um dia, furioso com o seu erro de
casting: "Mas não haverá ninguém que me livre deste padre turbulento?" Quatro dos cortesãos mais próximos interpretaram este desabafo como uma ordem indirecta e mataram o arcebispo em plena catedral, no dia 29 de Dezembro de 1170 (um dia depois da Festa dos Santos Inocentes, como toda a Cristandade notou). Foi um escândalo internacional. A violência contra pessoas, lugares ou objectos consagrados era um gravíssimo sacrilégio: o Papa ameaçou o rei de excomunhão, Henrique II fez penitência pública e os assassinos caíram em desgraça.
Não sei porquê, lembrei-me desta história medieval ao saber que entre os detidos pelo homicídio de Anna Politkovskaia, a jornalista russa morta junto de casa no ano passado, estão, segundo o Público de ontem, "um antigo e um actual agente da polícia e um outro dos Serviços de Segurança Federal, agência de espionagem interna sucedânea do KGB".
* T.S. Eliot, Murder in the Cathedral, II, v. 203.