Quinta-feira, 14.06.12

Não sejamos démodés - e reconheçamos ter havido alguma evolução (3)

Disse-me a dadivosa viúva de Vilalva que os livros estavam na adega havia mais de trinta anos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético; que o seu homem — Deus lhe fale na alma — mandara calear o quarto onde o estudante acabara, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto — trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto secamente do extinto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão fagueira o ventre grávido de uma gata maltesa que lhe resbunava no regaço, passando-lhe pela cara a cauda em atritos de uma flacidez de arminho. E eu que dedico aos bichos um afecto nostálgico, uma sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho com uma meiguice antiga — a das meninas da minha mocidade que piscavam. Onde isto vai!

 

Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, 1882

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Quarta-feira, 13.06.12

Não sejamos démodés - e reconheçamos ter havido alguma evolução (2)

Monday

This new creature with the long hair is a good deal in the way. It is always hanging around and following me about. I don't like this; I am not used to company. I wish it would stay with the other animals... Cloudy to-day, wind in the east; think we shall have rain… We? Where did I get that word?… I remember now—the new creature uses it.

(...)

 

Saturday

The new creature eats too much fruit. We are going to run short, most likely. "We" again—that is its word; mine too, now, from hearing it so much. Good deal of fog this morning. I do not go out in the fog myself. The new creature does. It goes out in all weathers, and stumps right in with its muddy feet. And talks. It used to be so pleasant and quiet here.

(...)

 

Monday

The new creature says its name is Eve. That is all right, I have no objections. Says it is to call it by when I want it to come. I said it was superfluous, then. The word evidently raised me in its respect; and indeed it is a large, good word, and will bear repetition. It says it is not an It, it is a She. This is probably doubtful; yet it is all one to me; what she is were nothing to me if she would but go by herself and not talk.

 

Mark Twain, Extracts from Adam's Diary, 1893

 

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Segunda-feira, 11.06.12

Tipicamente démodé (2)

 

Fala-se no dia de Camões, mas nessa data ninguém costuma preocupar-se excessivamente com a importância e o sentido, quer da lírica, quer da épica camoniana. Mesmo sem uma retórica exacerbada e patriotinheira, à moda do triunfalismo de antigamente, só lucraríamos com o humilde reconhecimento de que as dimensões identitárias e culturais de uma figura e de uma obra como a dele mereciam celebração mais adequada e iniciativas que propusessem um trato mais continuado e mais esclarecido com ele e com os seus contemporâneos. Isto nos levaria logo aos programas escolares e às questões do ensino da literatura e da história na escola, com todo o cortejo de considerações que se justificam. E levar-nos-ia também a questões existenciais mais profundas, tocando um sentido da cidadania mais substantivo e mais preocupado em lermos Camões também à luz do que hoje somos, e em sermos "lidos por ele" na mesmíssima medida.

É claro que o contacto com a obra do épico, hoje, não vai sem dificuldades, para além das que respeitam à complexidade do texto, à sua interpretação, à sua sintaxe, ao seu léxico, à sua inserção no quadro da mentalidade nacional e no próprio tecido cultural europeu, quer na diacronia, quer na sincronia. Camões entretanto deixou de ser lido a sério, funcionando cada vez mais como repositório de citações para sossego de umas quantas almas. Mas há aspectos que, ainda agora, poderiam ser vistos e compreendidos mais ou menos por toda a gente e que são pelo menos tão importantes quanto a exaltação das façanhas guerreiras e dos aspectos heróicos da expansão.

Um desses aspectos prende-se com a crítica dos excessos, desvios, abusos, corrupções e desmandos da sociedade do seu tempo. Outro, respeita à introdução de uma noção de trocas comerciais no texto do poema, para a qual Magalhães Godinho de há muito chamou a atenção. Outro ainda, acentua a importância do Amor, quer como manifestação espiritual e emocional da vida humana, que pode condicionar não apenas o destino individual, mas também o próprio curso da História, quer enquanto dimensão metafísica que dá acesso ao conhecimento cósmico, como já em Dante acontecia.

Sendo um repositório de tipo enciclopédico em que se compendiam múltiplos conhecimentos da sua época (históricos, geográficos, antropológicos...), a obra de Camões, no plano da cultura literária, é uma verdadeira suma intertextual da presença dos grandes clássicos. Desde logo, são de registar a destreza, a densidade e a qualidade literária com que é acolhida e tratada, numa perspectiva renascentista, quando não maneirista, mas sempre vivida, essa herança da Antiguidade. Depois, porque tais elementos envolvem uma compreensão e uma encenação do mundo a partir dos ensinamentos, mitos e figuras assim recebidos, mas questionam radicalmente tal herança do mesmo passo que a reelaboram. Os Lusíadas são um momento crucial do próprio processo de interrogação da Europa sobre si mesma. E também por isso são um monumento incomparável da cultura europeia.

O poema camoniano configura uma elaborada epopeia do desvendamento do mundo e da aventura do conhecimento humano: ao contrapor à fábula e ao mito critérios novos de verdade e de experiência; ao contrapor os testemunhos vividos de fenómenos naturais e as referências a tecnologias inovadoras ao saber meramente livresco dos Antigos; ao manifestar a plena consciência de estarem a ser ultrapassados os "vedados términos" do mundo até então conhecido; finalmente ao propor uma visão, conquanto ainda geocêntrica, da estrutura e funcionamento do Cosmos.

Numa geometria cujo paralelismo só pode ser intencional, os cantos V e X de Os Lusíadas, a rematar, respectivamente, a primeira e a segunda metades do poema, articulam os dois tempos fundamentais desse conhecimento, o que vem do domínio da Natureza e das suas forças e o que desenha uma arquitectura do Universo cujo modelo em "trasunto reduzido" é apresentado no "globo transparente". Assim a História se fez conexa com a experiência humana e a aventura da viagem torna-se iniciática e abre para uma contemplação da transcendência.

Camões foi capaz de pegar nestas coisas e de as tornar elementos essenciais da magnificência do seu poema. Não perdemos nada em recordá-las de vez em quando. Porque não começar já hoje?

 

Diário de Notícias, 6 de Junho de 2012

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publicado por Carlos Botelho às 12:00 | comentar | partilhar

Não sejamos démodés - e reconheçamos ter havido alguma evolução (1)

Então, numa floresta muito cerrada e muito tenebrosa, certo Ser, desprendendo lentamente a garra do galho de árvore onde se empoleirara toda essa manhã de longos séculos, escorregou pelo tronco comido de hera, pousou as duas patas no solo que o musgo afofava, sobre as duas patas se firmou com esforçada energia, e ficou erecto, e alargou os braços livres, e lançou um passo forte, e sentiu a sua dissemelhança da Animalidade, e concebeu o deslumbrado pensamento de que era, e verdadeiramente foi! Deus, que o amparara, nesse instante o criou. E vivo, da vida superior, descido da inconsciência da árvore, Adão caminhou para o Paraíso.

 

Era medonho. Um pêlo crespo e luzidio cobria todo o seu grosso, maciço corpo, rareando apenas em torno dos cotovelos, dos joelhos rudes, onde o couro aparecia curtido e da cor de cobre fosco. Do achatado, fugidio crânio, vincado de rugas, rompia uma guedelha rala e ruiva, tufando sobre as orelhas agudas. Entre as rombas queixadas, na fenda enorme dos beiços trombudos, estirados em focinho, as presas reluziam, afiadas rijamente para rasgar a febra e esmigalhar o osso. E sob as arcadas sombriamente fundas, que um felpo hirsuto orlava como um silvado orla o arco duma caverna, os olhos redondos, dum amarelo de âmbar, sem cessar se moviam, tremiam, esgazeados de inquietação e de espanto... Não, não era belo, nosso Pai venerável, nessa tarde de Outono, quando Jeová o ajudou com carinho a descer da sua Árvore! E todavia, nesses olhos redondos, de fino âmbar, mesmo através do tremor e do espanto, rebrilhava uma superior beleza - a Energia Inteligente que o ia tropegamente levando, sobre as pernas arqueadas, para fora da mata onde passara a sua manhã de longos séculos a pular e a guinchar por cima dos ramos altos.

 

Eça de Queirós, "Adão e Eva no Paraíso", 1896.

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publicado por Carlos Botelho às 05:00 | comentar | partilhar
Quinta-feira, 07.06.12

Tipicamente démodé (1)

 

"A proximidade do dia 10 de Junho, com toda a sua carga simbólica, sugere que se reflicta mais uma vez sobre a língua que falamos e a sua importância na evolução do todo nacional. (...)

Uma das dimensões em que o problema se coloca tem a ver com a chamada herança cultural, conjunto de elementos que permitem a um determinado grupo reconhecer-se como portador de uma identidade própria e comunicar ao longo do tempo. Essa herança cultural passa por muitos factores, e em especial pela língua, pelo património material e imaterial, pelos costumes e tradições, pela história e pela geografia... (...)

Toda a gente sabe que, actualmente, há um fosso muito acentuado entre os portugueses, sobretudo os mais jovens, e as componentes principais integradoras dessa herança.

No que à língua diz respeito, os programas escolares não têm contemplado nas últimas décadas o contacto exigente e variado com os grandes testemunhos da nossa língua ao longo da história, que são os veiculados pela literatura.

As gerações mais novas são confinadas a um pragmatismo comunicacional empobrecedor e rudimentar cujas consequências nos vão sair muito caras.

O sistema tende a incorporar o erro gramatical, legitimando-o, e a aceitar o empobrecimento lexical e sintáctico.

A língua, numa visão cara a George Steiner, é um instrumento de conhecimento e apreensão do mundo. Esse instrumento está permanentemente irisado de uma multiplicidade de valores afectivos, estéticos, sociais, culturais, etc., sedimentados pela memória e pela história colectivas, pelo uso transgeracional, pelos autores, pelas características dos lugares onde é falada, por muitos outros factores.

Disso não se pode fazer tábua rasa. (...)

Uma língua transporta grande parte de uma visão do mundo e de uma cultura. É pela boa aprendizagem de uma língua que se torna possível a formulação eficaz do pensamento abstracto nas suas implicações filosóficas, matemáticas, científicas. E é por aí que se chega ao conhecimento e ao progresso.

Por isso é imperativo que seja reabilitada a relação dos portugueses com a língua que falam e com a cultura que se exprime através dela. (...)

A cultura portuguesa não pode deixar de ser parte dessa realidade em que se inscreve, de uma herança cultural europeia, entendida na diversidade das suas expressões e na conjugação das suas matrizes principais, como, entre outras, a antiguidade grega e latina e a judeo-cristã, o desvendamento do mundo e a aventura epistemológica do séc. XVI, o século das Luzes, o Romantismo, o Realismo, os Modernismos, tudo o que configurou a Europa ao longo do tempo e alastrou, a partir dela, para outras zonas do mundo.

Tratando-se da cultura portuguesa, temos de ser nós, portugueses, os primeiros a zelar por esse estatuto e o processo correspondente passa por uma grande atenção ao que vai acontecendo no plano da escola, da família e das instituições que se preocupam com a formação e a aprendizagem dos jovens e com os valores insubstituíveis da cultura."

 

Diário de Notícias, 30 de Maio de 2012.

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Terça-feira, 05.06.12

Máis edukadôres dêmodê

Frank Kermode
 
Maria Alzira Seixo
 
George Steiner
 
Marguerite Yourcenar
 
Allan Bloom
 
Vasco Pulido Valente
 
 Maria Lúcia Lepecki
 
Jacqueline de Romilly
 
José Saramago
 
Harold Bloom
 
 Maria do Carmo Vieira
 
Saul Bellow
 
And last but not least...
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Cachimbos

O Cachimbo de Magritte é um blogue de comentário político. Ocasionalmente, trata também de coisas sérias. Sabe que a realidade nem sempre é o que parece. Não tem uma ideologia e desconfia de ideologias. Prefere Burke à burqa e Aron aos arianos. Acredita que Portugal é uma teimosia viável e o 11 de Setembro uma vasta conspiração para Mário Soares aparecer na RTP. Não quer o poder, mas já está por tudo. Fuma-se devagar e, ao contrário do que diz o Estado, não provoca impotência.

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