Este
post aqui (e também o
comentário) do camarada do Cachimbo João Miguel Gaspar, constitui o género de
exposições que costumam ser sumariamente despedidas como "corporativas" por parte da propaganda "socrática" ou da sua quinta coluna na "direita" dita "liberal".
A propaganda (neste caso, a "socrática") parte sempre os dentes quando embate
nestas descrições. Porque são
descrições e não efabulações. Enquanto que o discurso da propaganda é abstracto, vive numa atmosfera
rarefeita de realidade, isto é, paira acima das "coisas concretas" e só remotamente (de modo instrumental) tem que ver com elas, aquele tipo de descrições são menos grandiosas e ambiciosas, estão circunscritas aos modestos limites da realidade. É precisamente porque se encontram mais próximas da realidade, quer dizer, das coisas tal como realmente se passam (o dia-a-dia modestamente concreto - com tudo o que isso contém - nos tribunais, nas escolas, nas esquadras, nas repartições), que essas descrições são menos ruidosas, menos visíveis, não se prestam ao espalhafato. Por isso, o discurso de Sócrates só pode ser espalhafatoso, porque respira no nível do artifício e, aí, o primeiro-ministro é "eloquente" - mas, quando aparenta tentar descer à realidade e falar dela, inevitavelmente, soa a falso. É preciso não esquecer que, quando o discurso do primeiro-ministro parece tentar falar do "concreto" (nos estreitos intervalos da sua fala abstracta omnipresente), ele continua ainda enformado pela sua abstracção propagandística.
Por definição, o discurso "socrático" é
de propaganda, por isso não pode (nem quer) situar-se numa descrição da realidade. Esta é constantemente escondida, subtraída ao nosso olhar por aquele discurso. A eficácia deste processo é atingida quando, postos perante a realidade, não a reconhecemos como tal e tomamo-la, precisamente, como uma
irrealidade. É o que se passou aos olhos do público com os protestos dos magistrados, dos médicos, dos professores, dos polícias, dos funcionários públicos em geral (e talvez também dos agricultores e de assalariados) que apareciam esvaziados de autenticidade, porque
descontextualizados do cenário que a propaganda foi laboriosamente erigindo. Este um dos efeitos mais perversos do discurso "socrático".
Mas esta rarefacção do "concreto" seria insuportável se deixada a si mesma. Assim, tenta ser compensada, reforçada pela justificação "ideológica" mais rasteira: as objecções, as críticas, as simples dúvidas, as mais das vezes assentes na realidade (que, teimosamente, aqui e ali, se vai subtraindo às narrativas da propaganda), são desde logo arredadas, dum modo primário, como "corporativas".
A propaganda desconsidera todas essas posições com um imenso ruído para que não possam ser ouvidas. Nunca são verdadeiramente respondidas (veja-se os debates no parlamento ou as reacções do primeiro-ministro a manifestações) - são atacadas, por assim dizer, de lado, tanta vez
ad hominem. São, dessa maneira, praticamente esvaziadas de conteúdo e mesmo desligadas da sua ligação à realidade: apresentadas como meras expressões de "interesses", "privilégios", etc. Para o público ideal "socrático", todos os protestos se reduziriam a um desfile inócuo de gesticulações mudas, desprovidas de sentido, irreais, que percorrem as ruas com protestos esvaziados de qualquer conteúdo que não os seus "interesses" imediatos. Apenas "insultos", "maledicência", "bota-abaixismo". Num sentido, a contra-argumentação "socrática" é sempre uma
acusação moral, nunca "técnica". Os que se lhe opõem estão, antes de mais,
moralmente errados.
Na visão "socrática", como se viu
na entrevista, as famosas "reformas" nunca são justas ou injustas, benéficas ou perniciosas, competentes ou incompetentes. Há, quando muito, "problemas de comunicação" - as opções,
como tais, não são afectadas. O primeiro-ministro, na Quarta-Feira, para lá do embrulho de humildade, limitou-se a reproduzir, numa voz mais doce, os dois tipos de ataque do costume. Por um lado, a referência ao "bem comum": é este que motiva as suas opções políticas, logo os pontos de vista contrários são estreitos, "egoístas". Sócrates, assim, aposta na inveja social e pretende isolar do público, em ilhotas de descontentamento egoísta, as classes profissionais afectadas. (Pelos vistos, até aqui, terá tomado por ilhotas grandes ilhas...)
Por outro lado, ele "compreende" o "descontentamento", o "desconforto", porque as "reformas" são "muito exigentes" e requerem "mais trabalho" - isto é, os que resistem são incompetentes ou preguiçosos. A este respeito, nada de novo no novo Sócrates: continua insultuoso.