Desde a surpreendente queda do muro de Berlim, na já longínqua década de oitenta do século passado, têm vindo a surgir novas (re)leituras de Marx – da sua obra – imunes aos preconceitos ideológicos. A tese é simples: o pensamento de Marx não estava – nem está – errado; nunca falhou… As concretizações históricas concretas é que se alhearam do verdadeiro ‘espírito de Marx’: foi isso o que aconteceu. Nesse sentido, Derrida, Deleuze, Zizek e mais recentemente, entre nós, Sousa Dias[1] procuram desconstruir o dogmatismo da doutrina marxista-leninista de forma a possibilitar um ressurgimento do pensamento de Marx, mais autêntico, cujo espírito urge enquanto necessidade capital de uma sociedade decadente e saturada do capitalismo que nela vigora. O Marx que aqui nos é apresentando é um Marx avesso a qualquer ideologia, imune e purificado das deturpações ideológicas do leninismo, do maoismo, e de todos os que o tentaram concretizar e enclausurar num ‘ismo’; um Marx contrário a toda a fixação ou cristalização do humano em conceitos e sistemas; um Marx revoltoso de todo o realismo; um Marx cujo espírito – contido no conceito de ‘revolução’ - é essencialmente ‘emancipação’, «fé numa im-possível transformação»[2]; um Marx, num certo sentido, quase nietschiano. Com efeito, em Teses sobre Feuerbach, Marx afirma que «os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo (…); o que importa é transformá-lo». Esta máxima coaduna-se bastante bem com o espírito de reivindicação dos direitos individuais e da cultura de tolerância (quase sem limites) que fomenta uma ordem jurídica capaz de integrar diversos indivíduos, com diferentes desejos e aspirações, no mesmo espaço comum – o que aliás está bem patente na acção política da chamada esquerda moderna.
Gostava de deixar aqui três questões acerca desta renaissance marxista. Em primeiro lugar, não será que esta releitura do pensamento de Marx não poderia ter um equivalente em relação aos princípios do capitalismo e aos autores liberais? Ou melhor, porque razão é o pensamento marxista eterno e
sempre aplicável, enquanto que o capitalismo assiste ao seu término sempre que se depara com uma crise?
Em segundo lugar, não será que esta célebre tese marxista, segundo a qual devemos transformar o mundo em vez de o interpretarmos, não está profundamente errada? Não será que a crise actual que atravessamos não mostra os limites do homem e da sociedade? Não será, também, a realidade a impor-se aos nossos desejos e aspirações?
E, por último, não será este espírito de Marx – que certos autores propõem como parte da solução – um dos culpados da situação que vivemos? Ou seja, não será que esta cultura revolucionária de emancipação – que promove a «fé numa im-possível transformação» do mundo – não legitima os indivíduos a realizarem os seus desejos sem limites tendendo a originar situações insustentáveis do ponto de vista colectivo e social?
Concordemos ou não, creio que todos podemos tirar proveito da leitura destas novas interpretações de Marx e do nosso mundo hodierno.
[1] Ver DIAS, Sousa – Grandeza de Marx: por uma política do impossível. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.
ZIZEK, Slavoj – Viver no Fim dos Tempos. Lisboa: Relógio d’Água, 2011.
[2] DIAS, op. cit., p. 25